Napoleão Bonaparte, general e imperador da França, foi um dos maiores mitos da História.

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Napoleão e seus generais: imprevisão e insensatez

Napoleão Bonaparte (Ajaccio, Córsega, 15 de agosto de 1769 – Jamestown, Santa Helena, 5 de maio de 1821), general e imperador da França. Um dos maiores mitos da História, Napoleão imortalizou o seu nome por meio de suas conquistas, à força do culto patriótico, e do reconhecimento do inegável gênio militar.

Durante quase dez anos (de 18 de maio de 1804 a 6 de abril de 1814), foi o imperador da França, adotando o título de Napoleão I, e no mesmo período, deteve o controle de boa parte do território europeu.

Napoleão Bonaparte demonstrou incompetência na Rússia e é destruída a versão de que o frio derrotou os franceses. Dois dias depois de retornar a Paris, em dezembro de 1812, após a mais desastrada campanha de toda a sua carreira militar, deixando no rastro de sua retirada da Rússia mais de 500 000 soldados mortos, Napoleão Bonaparte afirmou no Senado: “O meu exército sofreu algumas perdas, mas foram elas devidas ao prematuro rigor do inverno.” A partir dessa versão difundida pelo homem que fracassara na tentativa de incorporar o vasto território russo a seu império, que cobria praticamente toda a Europa, consagrou-se uma dessas mentiras históricas que se sustentam ao longo do tempo – no caso de Napoleão, à força do culto patriótico francês a sua memória e do reconhecimento do inegável gênio militar que até então lhe garantira conquistas espetaculares.

Consagrou-se até a expressão “General Inverno” para identificar o inimigo que o derrotou, a mesma usada para equivocadamente explicar o malogro, 129 anos depois, dos exércitos de Hitler na invasão do mesmo território. Tal versão já foi suficientemente desmentida da incompetência e insensatez da campanha da Rússia. A figura que emerge, em contraste com o peso e a pompa da lenda em que se transformou Napoleão, é a de um general vacilante, responsável por uma série de erros fatais, preocupado em manter-se longe da linha de fogo, incapaz de reconhecer sua derrota militar, atribuindo-a ao frio, e insensível à sorte das tropas às quais prometeu “honra e glória” e acabou levando à destruição.

Para sepultar o General Inverno, encontra-se os argumentos mais simples e diretos. Napoleão entrou na Rússia em junho com um exército de 675 000 homens e de lá saiu em dezembro com apenas 100 000, numa investida que começou de sua base na atual Gdansk, na Polônia, passou por Moscou e voltou ao ponto de partida.

O grosso das perdas, porém, não aconteceu no inverno, durante a retirada, como proclamou Napoleão, mas durante os meses quentes de verão, de junho a setembro. Antes de disparar o primeiro tiro, o Exército francês já perdera 60 000 homens vitimados por fome, desinteria e tifo. Quando travou as piores batalhas da guerra, em Smolensk e Borodino, já próximo de Moscou, Napoleão tinha perdido mais de dois terços de seus homens.

TERRA ARRASADA – O Exército francês foi sendo dizimado aos poucos, sobretudo pela escassez de suprimentos. Os russos adotaram a política de terra arrasada, retirando suas tropas e as populações à medida que os franceses avançavam, queimavam cidades e devastavam as lavouras para deixar o inimigo sem alimentos. Napoleão deixou que suas linhas de abastecimento ficassem muito distantes e, quando chegou a Moscou, seu exército era uma turba andrajosa, faminta e indisciplinada – problemas agravados pelo formidável incêndio que os russos provocaram ao se retirar sem dar combate.

Desde a partida confiante de Napoleão de Paris, numa viagem que “pareceu um carnaval”, com nada menos que 300 carruagens para ele e seus oficiais, até os 35 dias que o imperador passou em Moscou na esperada atormentada de uma rendição russa que nunca aconteceu. “Minha campanha ainda não começou”, respondeu a um emissário o czar Alexandre I. Seus generais evitavam deliberadamente o combate para preservar o exército e deixar que as tropas francesas se exaurissem na própria incapacidade e falta de previsão de seu chefe.

“Eu os venço, mas não consigo alcançar o fim”, dizia Napoleão, que afinal ordenou a retirada sem ter acumulado provisões suficientes e sem o mínimo de preparo para o gelo e a neve que enfrentaria no caminho de volta. Os soldados não tinham uniformes apropriados, os cavalos não tinham ferraduras especiais, e por isso patinava, e os carros e canhões atolavam porque tinham rodas e não trenós, como os russos.

CANIBALISMO – O que se passa daí para a frente, transforma em pura carnificina a história de uma guerra cuja dimensão inspirou uma obra-prima como Guerra e Paz, de Leon Tolstoi, e uma música do vigor da Abertura 1812, de Tchaikovsky. Não aparecem nem a grandeza de um nem a pompa do outro. São descritos cenas de canibalismo, animais esfolados vivos por soldados esfomeados sob um frio que chegou a 26 graus negativos, matilhas de lobos devorando cadáveres e um exército outrora coberto de glórias se atropelando para alcançar terreno seguro na travessia do rio Berezina – um dos episódios mais dramáticos de toda a guerra. Em três dias, com os soldados disputando a dianteira a tapas, as trôpegas colunas de Napoleão conseguiram passar um rio gélido sobre duas pontes precariamente construídas.

HOSPITAL MACABRO – O teatro de horror logo em seguida, quando o desespero e a desordem entre os soldados crescem ainda mais após a partida de Napoleão de volta a Paris, antes que todas as tropas tivessem cruzado a fronteira, fugindo à perseguição dos russos. No diário do inglês sir Robert Wilson, que acompanhava o Exército do czar, descreve-se cenas macabras num hospital da cidade de Vilna, ainda em território russo, com os corredores atulhados de cadáveres. “Havia carcaças estendidas em todas as partes, e todas as janelas e paredes quebradas estavam estofadas com pés, pernas, mãos, troncos e cabeças para calafetar os buracos e proteger os vivos do ar frio”, conta ele.

Em contraste com a tragédia hedionda, o marechal Ney, um dos mais gloriosos comandantes de Napoleão, respondia a um ferido que lhe suplicava ajuda: “Que espera você que eu faça? Você não passa de uma baixa de guerra.” Outro, Murat, abandonava seus batalhões dizimados para retornar à Itália, com o comentário: “Não é clima para um rei de Nápoles.” O próprio Napoleão diria em Paris meses depois: “Um homem como eu não se preocupa muito com a morte de um milhão de homens.” De fato, pouco tempo depois, ele reorganizaria um exército para ir novamente à guerra, ser finalmente derrotado e partir para seu exílio e morte na Ilha de Santa Helena.

(Fonte: Veja, 13 de janeiro de 1988 – ANO 20 – N° 2 – Edição 1010 – LIVROS – Pág: 84/85)

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