Josef von Sternberg, o inventor de Marlene Dietrich: filmes sombrios, pessimistas e autoritários.

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Josef von Sternberg, o inventor de Marlene Dietrich, e sua herança: filmes sombrios, pessimistas, pessoais e autoritários

A SOMBRA DE VON, O ARROGANTE

Josef von Sternberg (Viena, Áustria, 29 de maio de 1894 – Viena, Áustria, 22 de dezembro de 1969), pintor, escultor, professor de cinema na Universidade da Califórnia desde seu último filme (“A Saga de Anatahan”, 1953), escritor de uma autobiografia (“Fun in a Chinese Laundry”), Sternberg se divertia em colecionar cartões de Natal. Mas eram cartões mandados pela mesma pessoa, todos os anos, e com a mesma dedicatória: “Não era nada sem você, continuo não sendo nada sem você”. A remetente, Marlene Dietrich, ele a conhecera na Alemanha, em 1930, quando fizeram juntos “O Anjo Azul”. Depois de mais seis filmes em Hollywood, criador e criatura passaram a ser confundidos. “Ela me perseguiu durante sete filmes”, diz Sternberg, “e toda vez que me elogia em entrevistas acaba fazendo de mim uma imagem odiosa.” Na verdade, Marlene sofreu muito nas mãos de Sternberg. Ele controlava sua vida, seu peso, suas roupas, seus gestos. Na filmagem do “O Anjo Azul”, ela teve um ataque histérico e jurou, aos prantos, que não queria pagar aquele preço para ser famosa. Depois, não conseguiu ser dirigida a seu gosto por mais ninguém e escrevia cartas amorosas a Sternberg. “Ela não se sustentava sobre as próprias pernas belíssimas”, diz Sternberg, “e eu a ajudei do jeito que pude.” Tanto, que Marlene, pobre desamparada, acabou sendo uma criatura de que o criador se orgulhava. Azedo e muito mal-humorado com atores (“Os atores são animais engraçados porque não são nada”), ele achava “solenes besteiras” as interpretações dos críticos sobre o mito de Marlene Dietrich. “Ela pode ser um mito para os outros, não para mim, Marlene sou eu.”

Um montador de sombras – Como outros cineastas americanos colocados pelos críticos no altar dos gênios (Chaplin e Orson Welles, especialmente), Sternberg queria ser o autor total de seus filmes: não satisfeito em escrevê-los, dirigi-los, montá-los, decorá-los, eventualmente produzi-los e fotografá-los, chegou a construir a própria câmara que usou em “A Saga de Anatahan”. Seus filmes, de formas densas, com delírios visuais e obsessões na decoração dos interiores, são cheios de segredos. Mostram personagens fechados, aventuras mais ou menos improváveis, desafios silenciosos, sussurros, subentendidos, meias palavras. Egocêntrico, irônico, autopunitivo, foi comparado por um crítico francês a “um fantasma preso dentro da sua solidão” e tomado como modelo pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, que confessa ter recebido sua influência nos contos do livro “História Universal da Infâmia”. Por isso, esse homem que queria ser o começo e o fim de tudo, o ponto de partida e o ponto de chegada dos seus filmes, passou a símbolo do artista distante, superior, sacerdote de uma concepção imperial do cinema. O historiador alemão Siegfried Kracauer, em seu livro clássico “From Caligari to Hitler”, chega a desconfiar de motivos mais graves para o autoritarismo de Sternberg. Sua obsessão em humilhar os atores e desprezar a plateia já teria, em si, algo de “nazista”. (“Em 1930”, defendeu-se Sternberg, “eu nem sabia o que era isso.”) De qualquer forma, Hitler detestou “O Anjo Azul”: achava que Sternberg dava uma visão “pessimista” da Alemanha. Sem ser crítico de cinema, o “Fuhrer” adivinhou, na história do professor que se arruína por causa de uma cantora, uma das constantes da obra de Sternberg: o pessimismo. Ao se retirar do cinema, deu uma melancólica declaração aos jornais: “Não sei o que sou. Se querem uma palavra para me definir, só há uma verdadeiramente justa: carniceiro”.

Uma lenda – Carniceiro ou não, gênio ou simples técnico habilidoso, Sternberg fica como exemplo mais firme do artista orgulhoso de tudo o que fez (o “Von” do seu nome foi acrescentado por ele mesmo só para sugerir nobreza). Diletante de várias coisas, considera bastante sérios os trabalhos que escreveu sobre filatelia chinesa primitiva, os quadros que pintou e as aulas de antropologia com que temperou seus recursos de cinema. Além disso, “psicanalisava bastante bem” seus vizinhos e não se espantou quando um crítico lhe disse que seus filmes da década de 30 se antecipavam em estilo a várias conquistas da década seguinte: “Todos os meus filmes estão avançados em relação à época em que foram feitos”. Melhor ainda: “Brecht viu meus filmes e tirou várias coisas deles para suas peças”. Influências? “Nenhuma de cineastas.” Gostos? “Há ainda alguns bons filmes hoje em dia.” Seguidores? “Sou inimitável.” Alguém do mesmo nível? “Buñuel é um grande cineasta. É o único a ter um controle das imagens tão completo quanto o que tenho.”

Mas von, o arrogante, acreditava realmente no que dizia? No Rio de Janeiro, durante o Festival Internacional do Filme, em março de 1969, ele passava as tardes sentado à beira da piscina do hotel, conversando em voz baixa com seu amigo Fritz Lang (1890 –1976). Sorrindo para a imprensa, elogiando os esforços do Cinema Novo brasileiro, era difícil reconhecer nele o crítico que, dois anos antes, em Mar del Plata, cortara o simpósio “O cinema como meio de expressão da grande cidade moderna, nos planos psicológico, sociológico e estético”, com esta intervenção: “O cinema jamais teve nenhum efeito psicológico sobre o indivíduo e sua única qualidade é permitir o relaxamento às pessoas”. Ou o desiludido que, três anos atrás, em 1966, declarou: “Não me interesso pelo cinema. Sempre estive à parte desse mundo. Todos os diretores querem a autenticidade, eu não. Só filmo em estúdio. Amo a artificialidade”.

Para os turistas, Viena é a bela capital das valsas e dos sonhos românticos embalados pelo Danúbio, eternamente azul. Mas, para os estudiosos de cinema, Viena é o berço de uma nobre raça de cineastas pessimistas, ferozes e arrogantes, e que no dia 22 de dezembro de 1969 – com a morte de um dos seus últimos exemplares, Josef von Sternberg – deu outro passo para a inevitável extinção. Quando o velho criador de Marlene Dietrich morreu aos 75 anos de um ataque cardíaco, o seu conterrâneo Fritz Lang (1890 –1976) finalizava o oitavo ano de inatividade e seus herdeiros Billy Wilder (1906-2002) e Otto Preminger (1905-1986), (ambos de 63 anos) arquitetavam produções comerciais que serão, em 1970, os únicos testemunhos de uma escola que fez as delícias dos críticos e semeou o pânico entre produtores e atores. Sternberg, ao morrer, já não tinha ilusões. Afastado do cinema há dezesseis anos, ele cumpria solitariamente um destino infeliz que tem acompanhado todos os cineastas de sua geração e de sua terra. Morreu glorificado, já tornado mito.

Um mundo cinzento – O destino infeliz dos cineastas vienenses, que começaram a chegar aos Estados Unidos nos últimos anos do cinema mudo, vem alimentando as mais estranhas especulações. Invadindo o mundo materialista de Hollywood, fantasmas de verdade não estariam sempre arquitetando uma tragédia para eles? Quando Erich von Stroheim (1885-1957) dirigiu “Greed” (Rapacidade) em Hollywood, em 1922, a Metro cortou de quatro para menos de duas horas o material filmado e ainda assim o diretor se tornou uma lenda. Com mais quatro filmes adulterados, ele continuou lendário, mas não conseguiu dirigir depois de 1932 (“Walking Down Broadway”, não lançado pelo estúdio) e terminou seus dias como ator na França. O alemão F. W. Murnau (1889-1931), criado em Viena, morreu num desastre de automóvel quando se dirigia para a estreia do seu filme “Tabu”, depois de uma carreira brilhante na Alemanha e principalmente nos Estados Unidos (“Aurora”, que rodou em 1927, figura sempre nos balanços dos críticos entre os dez maiores filmes de todos os tempos).

Fritz Lang (1890 – 1976), depois de uma gloriosa carreira na Alemanha e em Hollywood, estava reduzido a diretor de filmes classe B quando voltou para a Alemanha, em 1956. Lá, rodou “Os Mil Olhos do Dr. Mabuse”, em 1961, e não achou outros produtores, apesar do enorme sucesso de crítica. Os vienenses mais jovens parecem ter cansado antes do tempo, Wilder, violento crítico de Hollywood (“Crepúsculo dos Deuses”, 1950) e da vida americana (“A Montanha dos Sete Abutres”, 1951), acabou desaguando em comédias cínicas e amarguradas (a última, “Uma Loura por 1 Milhão”, de 1966, deu prejuízo). Com Preminger, depois de criar fama como diretor de temas escabrosos (tóxicos, em “O Homem do Braço de Ouro”, de 1955; violência sexual, em “Anatomia de um Crime”, de 1959), aconteceu o contrário: rico demais, ele se está especializando em superproduções felizes e distantes dos padrões da escola vienense, sempre crítica e tristemente desesperada em seus assuntos.

Uma carreira em pedaços – Intratáveis, prepotentes, autoritários, os vienenses não tem nenhum motivo para se envergonhar de Sternberg, que preferiu o silêncio a filmar sob pressões. Sua carreira, no entanto, se é triunfo sobre a máquina de Hollywood, é também um rosário de concessões a essa mesma máquina. Sternberg foi para os Estados Unidos aos sete anos, envolveu-se diretamente em 34 filmes, mas apenas dezenove podem ser considerados inteiramente seus e um, justamente o mais célebre (“O Anjo Azul”, de 1930), não foi feito em Hollywood (e sim na Alemanha). Ficaram célebres seus “filmes de dois minutos” (vivia abandonando o estúdio, aborrecido com os atores ou produtores), mas o primeiro que levou até o fim, “The Salvations Hunters”, de 1925, valeu-lhe um encontro muito importante. Um homem aproximou-se dele, num restaurante, e apresentou-se: “Meu nome é Charles Spencer Chaplin. Assisti seu filme. Duas pessoas no mundo entendem de cinema. Uma sou eu. A outra é o senhor”. Entusiasmado, Chaplin produziu e Sternberg dirigiu, no ano seguinte, “The Sea Gull”, mas o produtor jamais o lançou comercialmente, “por não tê-lo entendido”, segundo Sternberg. Dirigiu cenas de “Duelo ao Sol” (1946), terminou filmes para outros e outros terminaram seus filmes, sustentou durante sete anos (1950-1957) uma batalha com o magnata Howard Hughes, que produzira para ele “Estradas do Inferno”, e acabou derrotado: seu filme sobre herois da aviação foi passado numa versão “supervisionada” pelo produtor.

(Fonte: Veja, 16 de junho de 1971 – Edição n° 145 – CINEMA/ Sua Majestade Eisenstein – Pág; 72/73)
(Fonte: Veja, 31 de dezembro de 1969 – Edição n° 69 – CINEMA/ A SOMBRA DE VON, O ARROGANTE – Pág; 60/61)

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