Houari Boumedienne, ex-presidente da Argélia. Um dos políticos mais enigmáticos do mundo árabe.

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Boumedienne: no poder durante 13 anos

Houari Boumedienne (Guelma, 23 de agosto de 1932 – Argel, 27 de dezembro de 1978), militar e ex-presidente da Argélia. Um dos políticos mais reservados e enigmáticos do mundo árabe.
Seu rosto era severo, sua postura era dura, seus métodos eram autoritários. Raramente ele sorria. Ele era mais que sóbrio – era ascético. E, por isso mesmo, jamais se poderia dizer que Houari Boumedienne, presidente da Argélia desde 1965, gozasse propriamente do amor de seu povo.

TODOS OS PODERES – Boumedienne – Governou o país durante treze dos seus dezesseis anos de independência, desde o golpe militar contra o primeiro presidente do país, Ahmed Ben Bella (1918-2012). Talvez nenhum político de Argel possa assumir seu papel, nem centralizar em suas mãos, como ele fez, basicamente todos os poderes do Estado – desde os cargos de presidente, vice-presidente e primeiro-ministro, até o de ministro da Defesa e chefe do Estado-Maior.

Boumedienne, nome de guerra de Mohammed Ben Brahim Boukharouba, também não deixou muitos rastros de seu passado. Somente com a divulgação de uma sumária biografia oficial, foi possível por fim à controvérsia em torno de sua idade: ele tinha 46 anos. Fora isto, sabe-se que é filho de camponeses e que nasceu em agosto de 1932, em Clauzel, localidade perto de Guelma, na empobrecida região nordeste do país. Fez estudos secundários em Constantine, numa das raras escolas da Argélia francesa a seguir a tradição muçulmana. E, em 1952, para escapar do recrutamento no Exército colonial, foi para o Cairo, onde estudou na prestigiada universidade islâmica de Al-Azhar e conheceu os chefes históricos da revolução nacionalista que seria desencadeada dois anos depois na Argélia.

“PODEM CUSPIR” – Disciplinado, eficiente e com raro poder de organização, Boumedienne não tardaria a assumir, nos oito anos de guerra de independência, um papel de destaque. E terminaria assumindo, em setembro de 1963, o Ministério da Defesa no primeiro governo da Argélia independente, chefiado por Ben Bella, o grande líder da revolução nacionalista. Enfim, o passo decisivo, na carreira de Boumedienne, ocorreria quando ele chefiou, em junho de 1965, o golpe militar contra Ben Bella, acusado de negligência na administração do país e, mais tarde submetido a um impenetrável e sombrio regime de prisão domiciliar. Com Ben Bella, foi-se o que se poderia chamar de “fase romântica” da revolução argelina.

A primeira providência de Boumedienne ao assumir o poder foi desembaraçar-se dos conselheiros – marxistas, em sua maioria estrangeiros – de seu predecessor. E, depois, impor a austeridade para promover a industrialização do país e o que chamou de “revolução cultural” – basicamente, o retorno às tradições árabes e muçulmanas da Argélia, acompanhado de investimentos maciços em programas de alfabetização. “Podem cuspir sobre meu túmulo”, disse então Boumedienne. “Mas não irão cuspir na nacionalização do petróleo, na siderúrgica de El Hadjar e nas universidades. É isto o que conta.” As principais riquezas do país, de fato, foram nacionalizadas. Em breve, a Argélia poderá tornar-se o maior exportador mundial de gás – e, no campo da educação, mais de 70% dos argelinos são hoje alfabetizados.

“COMO DE GAULLE” – O estilo espartano dos primeiros anos – que provocaria a prisão, o exílio e a morte de muitos líderes nacionalistas argelinos – seria, porém, atenuado com o passar do tempo. Na fase final de seu governo, Boumedienne já não revelava mais seu puritano desdém pelo cerimonial. Já não usava a capa preta surrada de outrora, e se tornara figura que, com boa vontade, poderia ser considerada elegante em conclaves internacionais. Mudou também em outros sentidos e aspectos. Em 1973, por exemplo, ele surpreenderia os próprios membros de seu gabinete, ao revelar que se casara secretamente com a advogada Anissa Bensalem – filha de mãe suíça e considerada demasiado independente para os padrões muçulmanos ortodoxos. Desde então, Boumedienne passou a revelar um interesse novo pelos direitos da mulher.

Ao longo de seus treze anos de governo, Boumedienne soube igualmente demonstrar um crescente pragmatismo. Embora contando com considerável ajuda soviética, sobretudo para fornecimento de armas, ele tornou a Argélia um importante parceiro comercial dos Estados Unidos. São destinadas aos EUA nada menos que 40% das exportações argelinas. Ele soube também formar-se como estadista com audiência no mundo árabe e junto às nações em desenvolvimento. Foi de Boumedienne, por exemplo, que partiu a proposta de embargo do petróleo árabe ao ocidente, após a guerra de 1973, no Oriente Médio.

Na Argélia, sua notoriedade se impunha sobre tudo o mais – e talvez tenha sido este, no final das contas, seu maior defeito. Seu rígido autoritarismo, sua fúria centralizadora, acabou gerando os pecados de sempre: a asfixia das liberdades e o emperramento burocrático da administração e da economia do país. Boumedienne também não deixou espaço para herdeiros. Nenhum dos membros do Conselho da Revolução, órgão por ele criado em 1964 e que, ultimamente, vinha tendo existência apenas figurativa, possui projeção nacional. Apenas Boumedienne contava. E daquela forma peculiar: sem inspirar propriamente afeto, mas sobretudo respeito à sua autoridade. “Boumedienne era um pouco como De Gaulle”, disse a um jornalista um dos manifestantes reunidos no final da semana diante da sede da FLN. “Talvez ninguém o amasse verdadeiramente, mas ele, era respeitado e temido.

No entanto, a morte de Boumedienne, em 27 de dezembro, após 37 dias de estado de coma, causada por uma rara enfermidade sanguínea – o “mal de Walsdentrong” -, provocou, bem à maneira árabe, manifestações incontidas de emoção. Houve choros e gritos, em 29 de dezembro, em Argel, ao longo do cortejo entre o Palácio do Povo, a sede do governo, onde Boumedienne foi velado, e o cemitério de El Alia, onde foi enterrado. Milhões de pessoas acompanharam o féretro. Houve desmaios, houve até feridos. O funeral lembrou, pela presença e pelo sentimento das massas, o de Gamal Abdel Nasser, no Egito, em 1970.

Cumprindo disposições da Constituição legada ao país por Boumedienne em 1976, o presidente da Assembleia Popular Nacional, Rabah Bitat, único remanescente no poder dos “chefes históricos” da revolução argelina, assumiu interinamente a chefia do governo. Agora, Bitat tem 45 dias para convocar um congresso da Frente de Libertação Nacional, o partido único, destinado a escolher um candidato a presidente. Em seguida, esse candidato – único, naturalmente – deverá ser ratificado pelo voto popular. Importante, de qualquer forma, é o congresso da FLN. Há incertezas.

A morte de Boumedienne – ocorreu quando o edifício institucional que ele se empenhou em construir nos últimos dois anos ainda estava incompleto. A FLN, por exemplo, desde 1964 não realiza um congresso – e sequer tem um birô político constituído, meta que Boumedienne pretendia atingir no início de 1979. E talvez nenhum político de Argel possa assumir seu papel, nem centralizar em suas mãos, como ele fez, basicamente todos os poderes do Estado.

(Fonte: Veja, 7 de fevereiro de 1979 – Edição nº 544 – ARGÉLIA – Pág; 34)
(Fonte: Veja, 3 de janeiro de 1979 – Edição nº 539 – ARGÉLIA – Pág; 44)

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