Henrique de Souza Filho, o Henfil, criador de personagens como o Fradim, o Zeferino e a Graúna

0
Powered by Rock Convert

Henfil e seus irmãos
Henrique de Souza Filho, o Henfil, criador de personagens como o Fradim, o Zeferino e a Graúna, Henfil ocupou, de 1970 pra cá, a tribuna de um tipo de humorismo bastante peculiar – pela simplicidade de suas idéias e pela violência que emprega para defende – las.

“Foi um dos maiores talentos que já tivemos”, afirma outro dos grandes humoristas nacionais, Jô Soares. Hemofílico, há pouco mais de dois anos Henfil descobriu que estava com Aids, adquirida através de uma transfusão de sangue – a doença que o matou, afetou seu cérebro, e nos momentos finais de sua agonia ele era incapaz de falar, comunicava-se com médicos e enfermeiras através de sinais, mal conseguia mover os pés. “Sua morte é a prova final de que a falta de cuidados com a saúde pública está produzindo um massacre no país”, afirma o presidente do PT, Luís Inácio Lula da Silva.

Henfil foi enterrado com três bandeiras – a do Brasil, a do Flamengo e a do PT -, mas o aspecto mais terrível de sua morte é familiar. Ao cemitério São João Batista compareceram personalidades como o governador José Aparecido, do Distrito Federal, o presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Atha yde, o ex-secretário geral do PCB Luís Carlos Prestes, mas ali ocorreu a última reunião de três irmãos, todos hemofílicos, todos com Aids. O músico Francisco Mário teve uma crise de septicemia, internou-se para tratamento no Hospital da Ilha do Governador e saiu dali apenas para ver o irmão morto – chegou numa cadeira de rodas. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, 52 anos, contraiu o vírus da doença – até hoje, a quebra da resistência provocada pela Aids não produziu nenhuma ação devastadora sobre seu organismo, mas ele convive com o risco permanente de ver sua agonia ter início a qualquer momento. “Estamos numa loteria”, diz Herbert. Henfil, humorista, Francisco Mário, músico, e Herbert militante político de esquerda que viveu no exílio e se transformou numa das bandeiras vivas da anistia de 1979, são três irmãos que simbolizam muitas coisas – desde a semana passada, porém, eles encarnaram a mais dramática situação que a Aids produziu no país desde que a primeira vítima foi identificada.

“O PRÓXIMO SOU EU” – No cemitério, o encontro de Mário com Herbert foi curto – e amargo. “Henfil já foi, o próximo sou eu e depois é você”, disse-lhe Mário. “Agora, vá procurar sua analista”, prosseguiu , referindo-se ao tratamento que Herbert realiza, num esforço para manter o equilíbrio psicológico de pé. “Meu irmão foi assassinado, como eu serei e outros mais serão”, afirmou Herbert, mais tarde, aos jornalistas. Pelo presente, os três irmãos lembram os horrores de uma tragédia – sem cura visível. Pelo passado, são exemplares acabados de três gerações de brasileiros – numa época em que no país a gerações eram consumidas muito rapidamente e quando a juventude se movia pelos signos da esperança.

“Antes, cada um de nós tinha o seu trabalho, seguimos a trajetória normal de qualquer família”, lembra Herbert. “Com a doença, tivemos uma noção da tragédia muito grande”, acrescenta. Em 1964, quando Henfil fazia seus primeiros rabiscos na revista Alterosa, de Belo Horizonte, Herbert de Souza era um dos principais líderes da AP, sigla da organização esquerdista Ação Popular, dissidência radical dos movimentos patrocinados pela Igreja Católica. Após a derrubada do governo João Goulart, Herbert foi morar na clandestinidade, passou um ano em Cuba, onde tornou-se o primeiro representante brasileiro na Olas, abreviatura de Organização Latino-Americana de Solidariedade, entidade que o governo de Fidel Castro construiu com a finalidade de promover a luta de guerrilhas pelo continente. Nas páginas de O Pasquim, uma década mais tarde, a agressividade simbólica de Henfil transformou-se num bem-sucedido espelho da violência real do regime do A1-5 – nessa época, ele ganhava tanto dinheiro que chegou a temer que o tamanho de sua conta bancária diminuísse o ímpeto de seus trabalhos. Violinista, Francisco Mário fez carreira com as suas composições e a música instrumental – gênero que, no Brasil, marcou o início dos anos 80.

Na semana passada, o lugar particular desses irmãos apareceu no palco do Projeto Leste, em São Paulo, onde duas dezenas de artistas realizaram o show Bomba, em solidariedade a Henfil e às vítimas de Aids. Há nove anos, João Bosco e Aldir Blanc fizeram a música o Bêbado e a Equilibrista, que, na voz de Elis Regina se transformou numa espécie de refrão nacional pela anistia. Na ocasião, o drama dos irmãos freqüentou tanto as passeatas pela volta dos exilados, como Herbert de Souza, que vivia no México após uma peregrinação pelo Chile e pelo Canadá, como também as paradas de sucesso:
Meu Brasil
Que sonha
Com a volta do irmão Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete.
diziam os versos finais de O Bêbado e a Equilibrista. No espetáculo do Projeto Leste, a morte de Henfil foi anunciada ao final do show – quase 3 horas depois de ter ocorrido. O mesmo Aldir Blanc foi ao microfone, porém, para fazer uma declaração sobre os irmãos. “Eu, que sou filho único, gostaria de ter três irmãos assim: malucos, ternos e briguentos”, disse.

PURITANOS E MISSIONÁRIOS – separados pelo cotidiano, os três irmãos são retratos diferentes de um pedaço do Brasil, – que pode andar para frente e para trás – mas não deixa de trilhar um caminho conhecido. Até a adolescência, eles foram submetidos a uma educação severa no Sacro Colégio Arnaldo da Ordem do Verbo Divino, de Belo Horizonte, e cresceram num clima carregado de puritanismo. Naquele período em que tinha início a mesma fase de liberação nos costumes que o temor à Aids, hoje media, fez recuar, Herbert só teria sua primeira relação sexual depois de completar 20 anos de idade – com Henfil, isso só ocorreu quando ele já chegara aos 21. O pedaço do Brasil que andou no mesmo passo que os três irmãos é aquele pedaço do país onde membros da classe média resolveram abolir a paletó e a gravata, para usar sandálias de couro, camiseta de jeans como manifestações de um modo de pensamento e de vida, no qual pessoas com diploma universitário, como Herbert, ou que abandonaram um curso de Ciências Econômicas depois de freqüentar um único semestre, trajetória cumprida por Henfil, faziam o maior esforço possível para valorizar os terrenos mais visíveis da cultura popular tradicional – numa postura ao mesmo tempo generosa e messiânica.

Católica em sua origem, missionária em suas formas de atuação, a AP de Herbert de Souza o levou a passar o ano de 1971 no ABC paulista, com nome falso e um emprego de operário numa fábrica de louças – na esperança de recrutar os demais funcionários da empresa para os quadros de sua organização. Clandestino, Herbert chegou a se submeter a uma cirurgia de úlcera no Hospital das Clínicas, numa intervenção de alto risco, para um hemofílico e uma verdadeira temeridade para um dirigente das siglas de esquerda – se sua verdadeira identidade fosse descoberta, poderia ser transportado para os porões do DOI-Codi, onde os adversários do regime anterior eram massacrados pela tortura.

Arquiteto de dois frades de sucesso, Henfil povoou suas histórias em quadrinhos com um elenco de freqüentadores do mundo rural, como o cangaceiro Zeferino e a Graúna – era um feroz adversário do hábito nacional de assistir à televisão e designava as regiões mais avançadas do país com sarcasmo da expressão Sul-Maravilha. Compositor, Francisco Mário especializou-se, ao longo de cinco discos independentes que gravou, na produção de xaxados e baiões. Adversários do regime 1964, Herbert e Henfil agiram por caminhos diversos – escolheram resultados bem diferentes. Após deixá-lo largado em um quarto de hotel em Havana, o governo de Fidel Castro abandonou a AP de Herbert de Souza para investir no auxílio à ALN do ex-dirigente comunista Carlos Marighella, que no final, dos anos 60, seria transformado no braço da guerrilha cubana no Brasil. Com seus quadrinhos e seus personagens que provocaram riscos, Henfil tornou-se um fenômeno nacional produzindo estragos bem maiores no regime que o irmão pretendia enfrentar a bala – o livro Henfil na China bateu recorde de bilheteria em São Paulo e, no auge da popularidade, seu quadro no programa TV Mulher, chegou a ser visto por 16 milhões de telespectadores.

“DERROTA DE UM LUTADOR” – Na família, as doenças graves são um pesadelo antigo. Viúva de Henrique de Souza, um sujeito que ganhou a vida como tropeiro, dono de padaria e até diretor de penitenciária de Nossa Senhora do Ribeirão das Neves, a 25 quilômetros de Belo Horizonte, Maria da Conceição, mais conhecida como “A Mãe do Henfil”, 82 anos, teve oito filhos. Cinco são moças – todas saudáveis. Os três rapazes tiveram aquela infância delicada dos hemofílicos, essa doença que impede a coagulação do sangue, transmitida pelas mulheres, mas que se manifesta nos homens – uma corriqueira briga de garotos, nesse caso, pode se transformar numa hemorragia sem retorno. As quatro filhas de Maria da Conceição que se casaram lhe deram catorze netos e, com eles uma boa notícia – nenhum é hemofílico. Na adolescência, a primeira doença fez Herbert perder uma namorada – o pai da moça garantia que ele seria incapaz de chegar aos 30 anos de idade. Na maturidade, a Aids afugentou os amigos de seu filho, Henrique de 5 anos, que deixaram de freqüentar sua casa – só retornando depois que ele resolveu ter uma conversa com os pais dos meninos. Todos os dias, Herbert pensa na hipótese de que poderá ser salvo. “Confio em que haverá medicamentos eficazes para me curar quando a doença se manifestar”, diz ele. Todos os dias também, Herbert tem outros pensamentos. “Sinto-me, às vezes um lutador das causas perdidas.”
Criança, Henfil era o mais inquieto dos irmãos – e também o menos cuidadoso com sua doença. A partir do momento em que descobriu que estava com Aids, seu comportamento mudou – em 1986, chegou a passar o Natal com a mãe e, mais tarde, compareceu à sua festa de aniversário. Henfil falava de política e dos problemas do país – mas não permitia que a conversa chegasse ao mal que o consumia. “A depressão dele era maior que a doença”, conta Maria da Conceição.

No final do ano passado, num raro momento de lucidez, Henfil recebeu a visita do publicitário paulista Carlito Maia. “Você está assistindo a derrota de um lutador”, disse o humorista. Dono de uma personalidade capaz de momentos de doçura, Henfil apresentava, mais frequentemente, a força de sua malvadeza. Patrulheiro confesso de músicos como Gilberto Gil e Caetano Veloso, que se classificava como alienados, chegou a criar um quadro feito sob encomenda para colocar seus inimigos – o Cemitério dos Mortos-Vivos, para onde eram levedas as pessoas que tinham o cérebro chupado pelo Caboclo Mamadô. Nesse inferno, Henfil enterrou. Com razão, a cantora Elis Regina, que, em pleno regime do A1-5, subiu ao palco para animar uma cerimônia das Olimpíadas do Exército. O mesmo quadro, no entanto, lhe pregou ao menos uma armadilha. Pelo Cemitério dos Mortos-Vivos também passou o empresário Roberto Marinho, dono das organizações Globo – anos mais tarde, Henfil publicaria suas últimas histórias, com o personagem Orelhão, nas páginas de O Globo. Dono de um limitado repertório de piadas, que sabia reproduzir com indiscutível competência, Henfil padecia daquele que pareceu um mal incurável dos humoristas do país, o de fazer humor numa única direção, a de seu pensamento político – de esquerda, no caso.

Quando preparava o filme Tanga, Deu no New York Times, uma alegoria sobre uma revolta popular num país de população miserável sem data para estrear nos cinemas, Henfil criou um personagem chamado Aids – era o estereótipo do homossexual afetado, com trejeitos muito exagerados. O ator Carlos Moreno, convidado para fazer o papel ficou chocado – e não aceitou a proposta de encarná-lo, que lhe foi feita pelo próprio Henfil. “O personagem era até engraçado, mas eu já havia perdido muitos amigos por causa da Aids e não queria brincar com uma coisa dessas”, conta Moreno. “Henfil tinha aquela liberdade interior de um rebelde, um sapeca permanente”, afirma o cartunista Paulo Caruso.

No cemitério de São João Batista, os três irmãos se separaram. Francisco Mário voltou para o hospital. Herbert voltou à sua atividade como um dos líderes do movimento de solidariedade às vítimas da Aids. Nove anos depois do sucesso de O Bêbado e a Equilibrista, Betinho já voltou para casa – desta vez, foi Henfil quem partiu num rabo de foguete.

(FONTE: Veja, Especial – nº1010 – 13 de janeiro de 1988 – Pág. 42)

Powered by Rock Convert
Share.