Georges Duby, especialista em Idade Média, um dos últimos autores da escola historiográfica francesa, o livro O Ano Mil, que escreveu sobre o pânico nascido entre os cristãos europeus às vésperas do fim do primeiro milênio, é obra obrigatória nas prateleiras das livrarias de assuntos esotéricos

0
Powered by Rock Convert

Último humanista

Duby: Idade Média para o grande público

 

Georges Duby (Paris, 7 de outubro de 1919 – 3 de dezembro de 1996), o historiador que soube estabelecer um diálogo entre passado e presente

Georges Duby, especialista em Idade Média, foi um dos últimos autores da escola historiográfica francesa que, na sequência de uma obra prestigiosa, ganhou o estatuto de sábio europeu. Duby viu de perto as tragédias da Europa contemporânea. Seu pai, morto com 101 anos, viveu uma longa vida de solidão, tendo perdido todos os seus amigos de infância e de juventude nos campos de batalha da I Guerra Mundial.

Vinte e cinco anos mais tarde, no final da II Guerra Mundial, por uma cruel ironia do destino, o jovem Georges Duby foi um dos primeiros a descobrir o cadáver de seu mestre, o grande historiador e combatente antinazista Marc Bloch, fuzilado pelos alemães. No rescaldo dessas catástrofes, Duby elegeu a Europa inteira como terreno de reflexão e de pesquisa, escrevendo livros sobre a economia, a política e a arte medieval do Ocidente, numa escrita de “história total” que deu carne, osso e espírito à cultura humanista compartilhada pelos europeus.

Sem nunca se ter arvorado em guru de nenhuma seita de historiadores, Duby sempre praticou uma generosidade desinteressada. Num mundo acadêmico muitas vezes enrustido no particularismo regional e temático, interessava-se intensamente pelo presente e pela pintura moderna, dando aulas sobre Cézanne, depois de passear com seus estudantes pela montanha Sainte-Victoire, tema recorrente dos quadros do pintor oitocentista.

Como outros estudiosos do passado de seu continente, ele nunca acreditou que o comunismo fosse criar raízes na Europa do Leste. Em plena Guerra Fria, quando a maioria dos intelectuais do Leste Europeu – tachados de inocentes úteis ou de pérfidos comunistas – era objeto de esconjuros, Duby, junto com outros universitários franceses, organizava conferências históricas com especialistas húngaros, poloneses e checos, mantendo vivos os ideais europeus de liberdade. Bronislaw Geremek, futuro dirigente da Polônia pós-comunista e importante autor de estudos sobre a Paris medieval, entreteve um diálogo fraternal e frutuoso com Georges Duby durante esses anos difíceis.

São Francisco – Atento aos historiadores mais jovens, Duby conservou até o fim de sua vida laços afetivos com a liderança estudantil que o azucrinara com cobranças ideológicas nas agitações de maio de 1968. Seus livros e seus programas de televisão sobre as catedrais levaram a reflexão mais erudita a um vasto público. Fora da Europa, sua obra conheceu um sucesso por vezes inesperado. No Japão, onde o culto dos guerreiros samurais faz parte do patrimônio cultural da nação, sua biografia de Guilherme Marechal, um campeão dos torneios medievais do século XIII, teve grande impacto.

No Brasil, o livro O Ano Mil, que escreveu sobre o pânico nascido entre os cristãos europeus às vésperas do fim do primeiro milênio, é obra obrigatória nas prateleiras das livrarias de assuntos esotéricos. Mas foi naturalmente na França que seus escritos tiveram maior repercussão. Inseguros dentro do novo país plurinacional que se forma no seio da União Europeia, os franceses, guiados pelos livros e pelas conferências televisionadas de Duby, redescobriram a herança de sua civilização camponesa, que construiu grandes monumentos da arte ocidental.

Autor de livros luminosos sobre Joana D’Arc, São Bernardo e a arte dos monges cistercienses, Duby sempre se manteve sensível ao sentimento religioso. Em maio de 1996, quando fanáticos islamistas degolaram sete monges trapistas franceses do mosteiro de Thibérine, na Argélia, o historiador ficou vivamente impressionado com o movimento de fé que esse evento trágico desencadeou em alguns mosteiros da França. Nos últimos tempos, embora soubesse que estava irremediavelmente acometido de câncer, continuou trabalhando em seus manuscritos e recolhendo dados para redigir uma biografia de São Francisco de Assis.

Numa palestra sobre Jules Michelet, grande historiador medievalista e militante republicano do século XIX, Duby chamou a atenção sobre o fato de que dezenas de milhares de parisienses haviam acompanhado seu enterro em 1874. No dia 3 de dezembro de 1996, pode não ter havido tanta gente assim seguindo seu féretro pelas estradas campestres de Aix-em-Provence. Mas em vários lugares do mundo seus milhares de leitores sentirão bater durante muito tempo o coração generoso de um intelectual ímpar, de um grande humanista.

Duby faleceu no dia 3 de dezembro de 1996, no sul da França, aos 77 anos.

(Fonte: Veja, 11 de dezembro de 1996 – ANO 29 – N° 50 – Edição 1474 – MEMÓRIA/ Por Luiz Felipe de Alencastro – Pág; 121)

(Fonte: Veja, 8 de outubro de 1997 – ANO 30 – Nº 40 – Edição 1516 – Livros/ Por João Gabriel de Lima, Ricardo Valladares e Neuza Sanches – Pág: 132/133/134/135)

Powered by Rock Convert
Share.