Foi um dos pioneiros do que mais tarde se entendeu por arte moderna

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Duchamp: irreverência inesgotável

Marcel Duchamp (Blainville, 28 de julho de 1887 – Neuilly-sur-Seine, 2 de outubro de 1968), artista francês naturalizado americano, um dos gênios da arte moderna, um dos mais extraordinários artistas do século XX, o francês naturalizado americano, de talento bem-humorado, e de obra e trabalhos intrigantes, próximos da improvisação do que do conceito de obra de arte.
Duchamp foi um dos mais extraordinários artistas do século 20. Foi um dos pioneiros do que mais tarde se entendeu por arte moderna, atuou como um dos principais influenciadores de sucessivas gerações de artistas. Da pop-art de Andy Warhol (1928-1987) ao expressionismo abstrato que tomou conta da pintura nos últimos anos, das esculturas de Alexander Calder (1898-1976) à música minimalista de John Cage (1912-1992), há ecos e tons de Duchamp em boa parte do que se fez de bom em arte nas últimas décadas.
Ele não influenciou o mundo das artes tanto pelo que pintou ou esculpiu, mas pelo que pensou. Dono de um humor agudo e de uma inesgotável irreverência, iconoclasta feroz, Duchamp questionou e, afinal, subverteu alguns dos dogmas que desde sempre sustentaram o conceito de arte. “As pinturas morrem ao fim de cinquenta anos porque seu vigor desaparece e elas passam a ser história da arte” – eis uma de suas máximas que escandalizaram o mundo e fascinaram os artistas.
Pelas características de sua obra e por suas opiniões, Duchamp poderia ser incluído no panteão dos grandes nomes da vanguarda. Mais do que fazer arte que estivesse à frente de seu tempo, ele tentou mudar a própria relação da obra de arte com o espectador que a aprecia. Sua grande cruzada era contra a arte retiniana, ou seja, aquela que é considerada de qualidade apenas por apresentar formas e cores agradáveis aos olhos. Duchamp era sobretudo um artista cerebral, um teórico da arte que se comprazia em demolir padrões estabelecidos e, em lugar deles, construir propostas aparentemente desvairadas.

Mas o fazia com tamanho talento, e de forma tão convincente que conseguiu, efetivamente, construir um mundo à parte na arte moderna. “Toda pintura deve existir na cabeça do artista antes de chegar à tela”, disse certa vez, “e ela sempre perde algo de seu poder nessa transformação.” Para Duchamp, arte era sobretudo um jogo de ideias.

FUROR – Essa estética de Duchamp, ao mesmo tempo simples e maquiavélica, esteve retratada em toda a sua plenitude na exposição da Bienal de São Paulo. A mostra, selecionada com critério, inclui as obras mais festejadas de cada fase da carreira do artista, inclusive a que primeiro lhe deu fama, e talvez a mais conhecida – Nu Descendo Uma Escada. Pintado em 1912, quando Duchamp não tinha fama alguma, o quadro foi recusado numa exposição em Paris. No ano seguinte, foi incluído no Armory Show, uma exposição em Nova York destinada a mostrar as novidades da vanguarda europeia. O quadro causou furor, primeiro, por apresentar a fragmentação de formas do cubismo e, depois, pelo título – a crítica conservadora o elegeu como o símbolo máximo da degradação estética a que a arte moderna chegara.

Nu Descendo Uma Escada é uma obra belíssima, de exuberante sensualidade e que consegue imprimir ao estilo cubista um movimento e uma dinâmica raros no gênero. Duchamp era o antiartista, uma espécie de pedra de toque do movimento dadaísta, que pregava a desordem e o anarquismo nas sociedades europeias antes da I Guerra Mundial. A diferença é que Duchamp, passado o movimento dadaísta, prosseguiu em sua cruzada demolidora com afinco sempre crescente, amparado em teorias e argumentos dos quais se pode discordar, mas que se tem que reconhecer como brilhantes. Cada novo movimento que surgia era saudado por ele com elogios aos artistas e tiradas impiedosas sobre suas propostas. Nos anos 60, ao surgirem os happenings, precursores da atual arte performática, Duchamp comentou: “Acho os happenings extraordinários, pois eles introduziram na arte um elemento inteiramente novo – o aborrecimento. Eu nunca havia pensado nisso!’

SEM VENDER – O mito de Marcel Duchamp e de suas ideias revolucionárias foi sempre reforçado por seu próprio estilo de vida e pela trajetória que imprimiu a sua carreira. Mais surpreendentes que suas obras eram as decisões que tomava e não pareciam fazer qualquer sentido para um artista que, como se presumia, gostaria de ver sua obra reconhecida. Duchamp jamais encarnou o artista bem-sucedido. Até os últimos anos antes de sua morte não quis ver suas obras em exposições ou museus e não fazia questão de vende-las. “Sou um interessado em ideias, não em produto visuais”, dizia. Para reforçar sua tese, em 1923, já um artista consagrado pelas pinturas e festejado pela ousadia dos ready-mades, Duchamp simplesmente abandonou todas as formas de arte. Dedicou-se a jogar xadrez com empenho de um profissional do tabuleiro e tornou-se um enxadrista conhecido nos meios de Paris e Nova York. Nunca chegou a ser um campeão, mas celebrizou-se por usar estratégias pouco ortodoxas que, com frequência, o levaram à vitória.

Durante as décadas de 30 e 40, pouco se ouviu falar de Duchamp como artista. Para viver, deu aulas de francês nos Estados Unidos, trabalhou como bibliotecário e, por ironia, atuou como conselheiro para galeristas e colecionadores de obras de arte. Fumava cerca de dez charutos por dia e prezava a condição de celibatário coo uma das grandes qualidades que um homem pode cultivar, ainda que se tenha casado. Seu espírito bem-humorado não ficou, no entanto, adormecido. Em 1938, anunciou-se que ele voltaria à cena artística com uma grande obra. Num dia marcado, reuniu artistas e amigos para mostra-la – era uma valise com miniaturas de diversas de suas obras anteriores. De outra feita, para pagar os 115 dólares que devia a um dentista, desenhou um cheque num pedaço de papel, com todos os detalhes do cheque impresso – um verdadeiro ready-made -, e o usou para pagá-lo. Vinte anos depois, Duchamp compraria o cheque do dentista por um valor muito mais alto que o da dívida.

BILHAR – A convivência de Marcel Duchamp com a arte – e a determinação em negar seus princípios estabelecidos – começou ainda na infância. Seu irmão mais velho, Gaston Jacques Villon, foi um pintor conhecido internacionalmente até a sua morte, em 1963. Seu outro irmão, Raymond Duchamp Villon, morto na I Guerra Mundial, chegou a brilhar como escultor na Europa. Filho de um próspero tabelião que incentivava os dotes artísticos dos filhos, Duchamp saiu de casa aos 17 anos para tentar a própria carreira em Paris. Chegou à cidade numa época luminosa da arte moderna. Em poucos anos, Picasso e Braque virariam o figurativismo de pernas para o ar com a escola cubista. O futurismo estava prestes a surgir nesse panorama e o dadaísmo era uma influência marcante entre os artistas.

Duchamp se inscreveu numa escola de belas-artes, em 1904, mas logo os estudos perdiam o encanto. “Eu já me desilusira com a cozinha da pintura e passava a maior parte de meu dia jogando bilhar”, ele contaria mais tarde. A partir daí, Duchamp entrou no mundo da arte através do cubismo, mas sempre incluindo em seus quadros elementos que o distanciavam da linha mestra da escola cubista. Daí em diante, Duchamp jamais pôde ser enquadrado em nenhuma escola ou tendência. Até dedicar a maior parte de seu tempo ao xadrez, depois do êxito do quadro Nu Descendo Uma Escada e dos ready-mades, Duchamp iniciaria ainda um ambicioso projeto, abandonando na metade. Hoje, ele figura como um de seus trabalhos mais instigantes – A Noiva Desnuda por Seus Celibatários, Mesmo, também conhecido como Grande Vidro, uma complicada estrutura mecânica destinada a funcionar sem utilidade aparente.

Com o senso de humor que marcou todos os seus passos, Duchamp guardou sua última travessura para depois da morte. Em vida, ele doou uma obra inédita ao museu de arte da Filadélfia, onde está abrigada a maioria dos seus trabalhos, estabelecendo como condição que ela jamais poderia ser fotografada. A obra, mostrada pelo museu numa grande retrospectiva em 1973, que deve ser vista através de dois orifícios numa parede de madeira, mostra uma figura andrógina deitada numa montanha de perucas com a face oculta por tijolos, tendo ao lado uma pequena cascata d’água. Pode-se calcular o prazer com que Marcel Duchamp imaginava o público tomando contato com sua nova obra e perguntando-se o que ela poderia significar. Ao longo de toda a sua carreira, ele procurou justamente transformar a relação entre a obra e o espectador, buscando a surpresa e a indignação, e não apenas a contemplação.

OBRA DO ACASO – A ascensão da pop-art, nos anos 60, despertou uma renovada onda de interesse pela obra de Marchel Duchamp. Ao contrário do que se poderia supor, no entanto, ele não se sentiu lisonjeado. Isso porque obras como a lata de sopa Campbell’s, de Andy Warhol (1928-1987), criadas a partir de objetos do dia-a-dia, como os ready-mades, surgiram já como obras de arte reconhecidas, e como tal foram comercializadas. Marcel Duchamp, na época, se queixou de ter inventado os ready-mades justamente para desencorajar a estética, e de que agora sua ideia era usada para valorizá-la.

Incomodava-o também o fato de a pop-art repetir exaustivamente imagnes e temas. Uma reação natural de um artista de obras únicas, radicalmente diferentes entre si, que fugia tanto da repetição como da classificação.

O grande trunfo de Marcel Duchamp, na elaboração de suas obras, era justamente a interferência do acaso – esta era a força que ele considerava fundamental na criação. Os ready-mades nasceram por acaso – certo dia, ele saiu à rua para comprar uma pá de remover neve, fez nela uma inscrição e criou Antes do Braço Quebrado, sua primeira obra do gênero. Certa vez, quando seu Grande Vidro foi removido de um local para outro, uma parte dele se espatifou. Contemplando a obra, Marcel Duchamp declarou que ela havia ficado melhor ainda – e manteve-a quebrada.

MEGAESTRELA – No final da vida, mesmo desferindo as costumeiras farpas contra os movimentos artísticos, as formas de comercialização da arte e os museus, Marcel Duchamp aceitou o reconhecimento público de sua condição de megaestrela. Em 1963 foi realizada a primeira grande retrospectiva de suas obras, nos Estados Unidos. Três anos depois, foi a vez de a respeitada Tate Gallery, de Londres, abrir as portas para ele.

Nos últimos anos, morando em Nova York com a mulher, a milionária, com quem se casou em 1954, Marcel Duchamp passava o tempo visitando galerias, com frequência opinava sobre o cenário artístico de forma menos inflamada do que no passado. “Não há mais do que quatro ou cinco obras que realmente contam na criação de um artista, seja ele quem for”, costumava dizer, num tom que, se tratando de Marcel Duchamp, pode ser classificado de conciliador. O exagero da afirmação pode ser constatado na própria exposição da Bienal, que reafirma, em muito mais de cinco grandes obras, como um dos gênios da arte moderna.

Marcel Duchamp faleceu em 2 de outubro de 1968, aos 81 anos.
(Fonte: Veja, 7 de outubro de 1987 – Edição 996 – ARTE – Pág: 126/128)

 

 

 

 

 

 

 

 

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