Cecília Meireles foi uma voz única na poesia brasileira do século 20.

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POESIA
A lira do modernismo
Cecília Meireles foi uma voz única na poesia brasileira do século 20

Cecília Meireles foi um dos grandes nomes da poesia brasileira no século 20

Há um dado essencial na origem literária de Cecília Meireles que explica em grande parte os estudos e as discussões que hoje giram em torno de sua filiação estética, ora mais ora menos próxima do Modernismo de 22. Por volta dessa época, com pouco mais de 20 anos, Cecília surgia para a poesia brasileira com um grupo de escritores católicos que, por meio das revistas cariocas Árvore Nova, Terra do Sol e Festa, atuavam numa direção diversa da Klaxon radical dos paulistas.

Para o grupo do Rio, as fontes de renovação literárias com base no pensamento filosófico e espiritualista ainda eram fortemente ligadas ao Simbolismo. Essa história ajudou a dar margem a um sem-número de desinteligências, e a obra posterior de Cecília Meireles, principalmente a vista em Viagem (1939) e Vaga Música (1942), mostra que não se pode esboçar uma oposição fácil entre a sua poesia e o Modernismo.

Contudo, isso não significa adesão: nos anos que se seguiram, sempre ficou clara uma especificidade, que é maior que a natural, de caráter pessoal, entre a sua produção e a de seus contemporâneos. Cecília não pode ser pensada fora do Modernismo, mas também não apenas como simples filiada tardia a um movimento. De fato ela não passou pelo destroçamento às vezes pueril da métrica; ao contrário, manteve a fidelidade a uma poesia mais sensorial, musical e cromática, ligada à tradição poética portuguesa.

Não há como encaixá-la, isolá-la e pensar sua obra dentro de cânones fixos, sejam eles de origem “parnasiana” ou “modernista” ou, na saída mais habitual, “neo-simbolista”. Há mais. Talvez seja isso que explique em grande parte a variedade surpreendente de sua obra – da estréia com Espectros (1919) ao nacionalismo de Romanceiro da Inconfidência (1953).

Um conjunto de lirismo único, expresso em versos como os do poema Guerra, de Mar Absoluto e Outros Poemas (1945), em que Cecília mantém a métrica e o ritmo sem (supostamente) se desligar do seu século, atenta, como seus contemporâneos, ao mundo ao redor: “Tanto é o sangue/ que os rios desistem de seu ritmo,/ e o oceano delira/ e rejeita as espumas vermelhas.// Tanto é o sangue/ que até a lua se levanta horrível,/ e erra nos lugares serenos,/ sonâmbula de auréolas rubras,/ com o fogo do inferno em suas madeixas.// Tanta é a morte/ que nem os rostos se conhecem, lado a lado,/ e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.”.

A seguir análise do espaço de Cecília Meireles na poesia brasileira do século 20.

Cecília e o Modernismo

Ainda não temos uma verdadeira história do Modernismo no Brasil. Mesmo os historiadores mais ecumênicos costumam articular a trajetória das letras no país na primeira metade do século 20 em torno da Semana de Arte Moderna de 1922 e de seus protagonistas e antagonistas. Isso reduz todo o resto a mero pano de fundo povoado de personagens definidos em função das figuras que ocupam o centro do palco. Não vale a pena discutir aqui os chatos tecnicismos dos sistemas de periodização, mas é fundamental assinalar o erro de perspectiva que coloca perdidos no horizonte, ou diminuídos pelo enfoque, poetas como Jorge de Lima e – especialmente – Cecília Meireles. É um erro parecido com o dos franceses que acreditam que a sua história se identifica com a modernidade graças ao estardalhaço da Revolução Francesa e suas sequelas, enquanto a verdadeira modernidade – a revolução industrial e a democracia burguesa – avançava pacífica e majestosamente por panoramas históricos menos convulsos e espetaculares. O resultado é que os esquemas interpretativos do Modernismo no Brasil têm sérias dificuldades em situar com coerência a obra de alguém como Cecília.

As dificuldades

Nunca poderemos lamentar suficientemente que José Guilherme Merquior não tenha escrito o segundo volume de sua Breve História da Literatura Brasileira (o primeiro volume, De Anchieta a Euclides, escrito em 1971, foi publicado em 1977). Merquior talvez tenha esbarrado em dificuldades estruturais que não conseguiu resolver, e indícios delas podem ser discernidos na evolução de suas opiniões sobre o período desde o ensaio A Poesia Modernista, de 1962 (editado em A Razão do Poema, 1996) até o texto de 1981 O Modernismo e Três de Seus Poetas (ver O Elixir do Apocalipse, 1983). Neste último o crítico dá uma inédita relevância à obra de Jorge de Lima, afirmando que o autor de Invenção de Orfeu (1952) “encerra e liquida o ciclo evolutivo da poética modernista brasileira”. Já Cecília Meireles fica ainda relegada ao “Modernismo de reação, antimodernismo dirigido contra a vanguarda paulista”. Não encaixa.

Antimodernista?
Nenhum dos grandes modernistas jamais considerou “antimodernista” a obra de Cecília Meireles, associando-a sem hesitação ao programa antipaulista do grupo espiritualista carioca com o qual esteve brevemente vinculada. Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes sempre a trataram inter pares, com total sintonia e declarada admiração. E, segundo, porque Cecília Meireles nunca fez vida – e muito menos política – literária. O texto de Merquior foi escrito para uma obra de consulta alemã e sofre das distorções de uma forçada perspectiva tradicional. Nele aparecem, porém, os germes de uma solução do problema historiográfico que apresentam Jorge de Lima e Cecília Meireles. Na última seção do artigo, em que compara o “euromodernismo” ao Modernismo brasileiro, Merquior lembra que “a obra dos modernistas brasileiros não partilha daquele enigmatismo (o ‘estilo das trevas’ de Adorno) do alto Modernismo ocidental”. A poesia brasileira, segundo Merquior, só o atinge a partir de Invenção de Orfeu. Jorge de Lima partira do impulso primordial dos modernistas brasileiros, a “conquista do Brasil”, para chegar a uma “problemática universalista de fundo claramente soteriológico (que trata da salvação do homem)”. Isso é correto, só que é preciso destacar que Cecília Meireles vinha trilhando esse caminho desde a publicação de Viagem (1939).

Um lugar no quadro da literatura brasileira
Falta averiguar por quais razões é tão difícil incluir, no lugar que merece, a obra de Cecília Meireles no quadro geral da literatura brasileira do século 20. Uma maneira poderia ser a de alterar radicalmente a perspectiva, posicionando-a no marco da literatura ocidental contemporânea. Cecília Meireles partilha com Manuel Bandeira e Jorge de Lima o problema de ter publicado seus primeiros poemas sob forte influência simbolista, antes da Semana de Arte Moderna. Bandeira salvou-se por pouco de ficar, na historiografia oficial, como mero precursor, o “São João Batista” do Modernismo brasileiro. Jorge de Lima teve uma trajetória mais difícil, embora a variedade de suas aventuras estilísticas pudesse às vezes ser assimilada à experiência modernista, sob o rótulo do regionalismo, por exemplo. Mas o isolamento – ou melhor, o singelo particularismo – de Cecília Meireles parece total.

Como Paul Valéry
Uma comparação pode ser feita com Paul Valéry, se, por hipótese, ele tivesse tido outra trajetória de vida e literária. Se em lugar da amizade com André Gide e a conexão com a Nouvelle Revue Française, tivesse escolhido cultivar sua amizade com Paul Léautaud e um vínculo com o grupo do Mercure de France. Nada disso teria impedido que depois de seu silêncio poético entre 1898 e 1917 escrevesse e publicasse La Jeune Parque (1917), que nada tinha a dever ao desenvolvimento da poesia francesa do período. A diferença consistiria em que seu nome não seria automaticamente associado à plêiade do alto Modernismo francês, com Gide, Claudel, Proust, etc., para não falar do Modernismo revolucionário de Apollinaire e companhia. A avassaladora superioridade de sua obra não permitiria ignorá-lo, mas a dificuldade em situá-lo – em realidade, como Yeats, Pasternak ou Juan Ramón Jiménez, é estilisticamente um pós-simbolista que se reinventa – minguaria notavelmente sua presença histórica.

Paralelismo histórico
É evidente que um fenômeno de paralelismo histórico caracteriza o desenvolvimento do Modernismo nas letras ocidentais. O período do entreguerras foi talvez o mais rico da história em todo tipo de experimentações revolucionárias, técnicas, temáticas e estilísticas. Mas a produção nem sempre estava à altura dos altos vôos teóricos, nem em proporção direta aos esforços da pesquisa. Em East Coker (1940), T. S. Eliot lamentava-se: “Cá estou, no meio do caminho, havendo durante vinte anos -/ vinte anos desperdiçados, os anos de l’entre deux guerres -/ tentando apreender o uso das palavras, e toda tentativa/ é um novo início, e um novo tipo de fracasso”. Em realidade, o cansaço e sentimento de futilidade eram perceptíveis muito antes entre os modernistas radicais. Maiakovski, que em 1912 tinha exigido “jogar fora Pushkin”, reconhecia em 1924, em Jubileu, que Pushkin sobreviveria no tempo, e na vida do povo, de um modo que ele mesmo, obviamente, não conseguiria. E se Eliot tem ainda hoje uma vigência que Maiakovski e os futuristas perderam há muito tempo, é porque, em lugar de rejeitar, a tradição a renovou.

Eliot e Drummond
T. S. Eliot é excepcional na medida em que – como Drummond na poesia brasileira – foi ao mesmo tempo um revolucionário e um conservador. Já os meros revolucionários tiveram menos permanência. E por excelentes razões: nada envelhece tanto quanto as novidades, sem contar que as novidades têm o péssimo costume de nem sempre serem tão novas. É sintomático do mencionado fenômeno do paralelismo histórico que, pela insopitável força e solidez da sua obra, muitos autores que de fato eram pós-simbolistas fossem desde o início considerados como os pontos altos do Modernismo. Em O Castelo de Axel (1931), de Edmund Wilson, um dos livros-chave no estabelecimento do cânone modernista, apenas três dos seis autores estudados, Gertrude Stein, James Joyce e T.S. Eliot (estes dois ambiguamente), podem ser considerados como verdadeiros modernistas. Todos os outros, Yeats, Valéry e Proust, são irrefutavelmente pós-simbolistas que absorveram as conquistas do Modernismo ao longo de um percurso que o antecede e o supera. O mesmo acontece com os poetas americanos Robert Frost e Wallace Stevens. Podem-se registrar outros nomes: Antonio Machado e Juan Ramón Jiménez em espanhol, Umberto Saba e Montale em italiano, Pasternak e Mandelstam em russo, Stefan George e Rilke em alemão.

O Pós-Modernismo
O elemento mais interessante desse curioso paralelismo é que o Pós-Modernismo se identifica com maior naturalidade com os pós-simbolistas do que com o Modernismo. Isso fica claríssimo na literatura de língua espanhola a partir da “geração de 27” (García Lorca), nos poetas dos anos 30 de língua inglesa (Auden), e nos franceses Éluard, Michaux, Char e Ponge. Na literatura brasileira, Merquior, no texto citado, assinala a “vitória” do estilo tardio de Jorge de Lima no crepúsculo do Modernismo, na década de 50. Este fica assim “encerrado e liquidado”, superando a mera “interpretação da terra, de um hic et nunc historicista”. Há uma certa pressa e confusão no uso de conceitos. Todavia, é possível adaptá-los e aplicá-los ao caso de Cecília Meireles, inclusive porque as afinidades estilísticas (elevadas à proporção épica) do “orfismo” de Jorge de Lima com a obra de Cecília são nitidamente visíveis. Manuel Bandeira, na sua Apresentação da Poesia Brasileira (1944), é mais direto e claro. Falando do grupo espiritualista – que só é lembrado hoje pela sua escura vinculação com Cecília Meireles -, Bandeira registra a ambição de “exprimir a realidade brasileira, não como coisa que começa, erro do primitivismo pau-brasil, mas como coisa integrada na realidade universal”.

Uma voz distinta
É exatamente a dimensão mais alta e ambiciosa da poesia de Cecília Meireles que faz eco, contemporâneo, às vozes mais puras do paralelismo pós-simbolista das letras ocidentais na época modernista. Paralelismo que termina num imprevisto “sorpasso” histórico do Modernismo revolucionário, encerrando-o e liquidando-o. Como os outros grandes pós-simbolistas, a poetisa “vale-se de todos os recursos tradicionais ou novos”, diz Bandeira, desde as “claridades clássicas” até as “aproximações inesperadas” dos surrealistas. É isso que faz dela “uma voz distinta entre os nossos poetas”. Tão distinta que ainda não terminou de ser assimilada pela preguiçosa simetria da periodização convencional. Um ano depois, em 1945, a poetisa parece descrever a própria situação em Mar Absoluto: “Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,/ mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase”. Exatamente o que faltou aos modernistas: direção e êxtase.

Como descrever Cecília
Otto Maria Carpeaux faz, na sua ainda indispensável Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira (1949), uma sutilíssima distinção que é talvez o mais conciso dos julgamentos literários. Carlos Drummond de Andrade, diz Carpeaux, é reconhecido como “o maior poeta do Brasil”; mas no verbete sobre Manuel Bandeira afirma que este é “o maior poeta moderno do Brasil”. Qual a diferença? A palavra “moderno”. Brilhante. Não dá, honestamente, para hierarquizar dois grandes artistas. Só é possível caracterizá-los, de maneira que, ao ocupar o espaço que lhe corresponde, o poeta mencionado assuma seu justo lugar entre seus pares. É Drummond maior que Bandeira? Não. Apenas ocupa mais espaço, um espaço que se confunde com a forma do Brasil, assim como o de Bandeira se confunde com o de uma singular e entranhável maneira de ser brasileiro. Do mesmo modo podemos dizer de Cecília Meireles que é o maior poeta lírico, “poeta puro”, do Brasil. Mas isso não termina de descrevê-la, e nisso reside a sua glória particular: ela é também, com Jorge de Lima, uma das maiores vozes da lírica pura do século 20, de uma maneira que nenhum outro poeta brasileiro pode aspirar a ser.

(Fonte: http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura – POESIA – A lira do modernismo/ Por Hugo Estenssoro – 10/03/2010)

Cecília era uma aluna exemplar e logo demonstrou também sua vontade de ensinar

Ela teve uma vida antenada com o seu tempo e o seu País. Cecília Meireles usou a crônica de jornal para fazer os adultos refletirem sobre a Educação das suas crianças – e a poesia, para fazer o público infantil pensar sobre o mundo de cada dia. Também defendeu com unhas e dentes as liberdades da mulher, isso, em uma época onde o papel feminino se resumia à lide doméstica. Conheça outros destaques da trajetória dessa brasileira invulgar.

1. Nasceu em 7 de novembro de 1901
Carioca, de nome completo Cecília Benevides de Carvalho Meireles, perdeu os pais ainda criança; foi educada por uma de suas avós, mãe de sua mãe, portuguesa dos Açores.

2. Aluna exemplar, desde cedo mostrou interesse por poesia
Cecília começou a escrever poemas aos 9 anos. Também logo mostrou vontade de ensinar – após concluir o curso da Escola Normal, aos 16 anos, tornou-se professora primária.

3. Os primeiros sonetos foram publicados aos 18 anos
Eles tinham conteúdo histórico e apareceram no livro “Espectros”, Estudante de música, tudo o que escrevia era marcado pela sonoridade e pelo ritmo, recorrendo a assonâncias e aliterações, por exemplo.

4. O primeiro casamento aconteceu em 1922
Cecília se casou com Fernando Correia Dias, artista plástico português, com quem teve três filhas.

5. Na década de 20, ganhou notoriedade por defender a liberdade, mulher de ativa participação política
Cecília lutou pelos direitos da mulher, pela imprensa livre e por entender a arte como instrumento a serviço da educação. É dessa período o lançamento de “Criança, meu amor”, crônicas sobre o cotidiano infantil (1924).

6. Foi responsável pela coluna diária de educação, no jornal carioca Diário de Notícias, entre 1930 e 1933
Seu engajamento em favor dos ideais de uma Escola Nova era apaixonado, a ponto de afastá-la da criação poética. Bateu de frente com o governo Getúlio Vargas, que defendia o ensino religioso nas escolas públicas. Foi por sua iniciativa que a primeira biblioteca para crianças acabou sendo aberta no País – o Centro Infantil do Pavilhão Mourisco, no Rio de Janeiro (1934).

7. Em 1939, voltou a publicar poesia (‘Viagem’), marco estético em sua carreira
Pela obra, Cecília Meireles ganhou prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. A convite da Universidade do Texas, lecionou Literatura e Cultura Brasileiras nos EUA (1940). Viúva, casou pela segunda vez com Heitor Grilo, engenheiro.

8. Nos anos 40, colaborou para o jornal A Manhã, escrevendo sobre folclore para crianças
Sua poesia “adulta” continuou também a chamar a atenção ao publicar “Vaga Música”, “Mar Absoluto” e “Retrato Natural”, entre outros títulos. Em 1953, após uma viagem a Ouro Preto (MG), escreveu “Romanceiro da Inconfidência”, obra capital de sua trajetória poética, baseada em episódios da Inconfidência Mineira.

9. Cecília Meireles é reconhecida pela poética “pura”
À medida que o tempo passa, aumenta o seu lugar de destaque nas letras nacionais – é admirada publicamente poetas modernistas, caso de Mario de Andrade e Manuel Bandeira.

10. Em 1964, publicou “Isto ou Aquilo”, a obra de poesia infantil mais afamada
Em 9 de novembro, dois dias após completar 63 anos, morreu na cidade natal, deixando mais de 30 títulos – dois deles, “Inéditos” e “Cânticos”, publicados post-mortem.

(Fonte: http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura – Literatura – Cecília Meireles, em dez momentos/ Por Marion Frank – 07/11/2012)

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