Augusto dos Anjos, poeta paraíbano, o artista genial que o público descobriu antes da crítica.

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Augusto dos Anjos: força expressiva de sua obra fomentou lendas em sua biografia, como a de que teria tuberculose

Linguagem científica: Ao usar linguagem científica, em sua ótica pessimista o poeta reduz o homem à insignificância de elementos químicos, como em Psicologia de um Vencido.

Antes do modernismo, Augusto dos Anjos buscava inspiração no cotidiano para criar seus versos. Tristezas de um Quarto Minguante é um exemplo.

Na boca do povo: Vários versos de Augusto dos Anjos viraram ditos populares, como o “a mão que afaga é a mesma que apedreja” de Versos Íntimos.

Augusto dos Anjos (Cruz do Espírito Santo, 20 de abril de 1884 – Leopoldina, 12 de novembro de 1914), poeta paraíbano, o artista genial que o público descobriu antes da crítica. O poeta paraíbano Augusto dos Anjos é o tuberculoso mais notório da literatura brasileira. Mais até que Manuel Bandeira. Sobre Augusto dos Anjos escreveu Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala: “O mundo para ele não era alegria de criação nem obra de renovação, mas constante dissolução de vida, apodrecendo diante de seus olhos escancarados de bacharel tísico”. E mais adiante: “Tornou-se um exemplo a favor da tese de Spinoza, a de que são os órgãos e as vísceras de um indivíduo que dão forma e sabor ao seu eu”.

Gilberto Freyre errou. Augusto dos Anjos não é justificativa para a filosofia de Spinoza. É, em vez disso, a mais completa tradução de um verso de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor. Ao contrário de Manuel Bandeira, que hospedou o bacilo de Koch nos pulmões ao longo de boa parte de seus 82 anos de vida. Augusto dos Anjos nunca foi tuberculoso. Gilberto Freyrenão foi o único a ser enganado. Particamente todos os críticos que analisaram a obra de Augusto dos Anjos fizeram alguma referência à sua suposta doença. O poeta paraíbano, que, em prosa ou em entrevistas, nunca disse que era doente. Ele foi, voltando a Fernando Pessoa, capaz de fingir a dor com tanta eficiência em seus sonetos que transformou essa mentira em verdade, enganando até os especialistas. Antes que a crítica reconhecesse Augusto dos Anjos como um dos maiores poetas do país, ele já era objeto de culto entre os brasileiros que não frequentam as academias. A dor, para esses brasileiros, é um pouco como Augusto dos Anjos a retratou, com suas imagens vertiginosas e musicalidade áspera que materializavam, como ele mesmo dizia em Monólogo de uma Sombra, “a solidariedade subjetiva de todas as espécies sofredoras.”

PROSTITUTAS DE SALVADOR – Augusto dos Anjos é um fenômeno. Lançou apenas um livro em vida, Eu, em 1912, provavelmente o volume de poesias mais editado no século XX no Brasil. Na literatura brasileira de todos os tempos, só perde para volumes de poesia que fazem parte do currículo escolar, como Espumas Flutuantes, de Castro Alves. Eu, que em suas sucessivas reedições já recebeu dois apêndices – Outras Poesias, que reúne o material guardado pelo autor para um segundo livro que nunca publicou, e Poemas Esquecidos, com alguns de seus inéditos -, nunca mereceu essa honraria. No ensino oficial, Augusto dos Anjos sempre foi um poeta maldito, visto mais como curiosidade do que como o grande artista que realmente foi.

O sucesso de Augusto dos Anjos entre as classes populares é um fenômeno até pouco estudado. Eu – praticamente ignorado na época de seu lançamento, quando ainda vigorava o gosto parnasiano – começou a experimentar sucessivas reedições a partir dos anos 40, época da industrialização e da consolidação da classe operária nas grandes cidades. Em seus poemas, Augusto dos Anjos fala dos pobres, dos que sofrem, dos desvalidos da sociedade, e é natural que haja uma identificação das classes menos favorecidas com a sua poesia. Augusto dos Anjos viveu exatamente no período em que o processo de urbanização se acelerou. Das cidades, pintou com viva cor o lado mais sombrio: os cemitérios, os prostíbulos, as tavernas, os doentes, os marginais.

Há expressões que se tornaram verdadeiros ditos populares através da poesia de Augusto dos Anjos, como “um urubu pousou na minha sorte”, do poema Budismo Moderno, e “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, de Versos Íntimos, seu poema mais famoso, que já apareceu até em novela de horário nobre, das 20h. “É um de meus poemas prediletos”, diz o ator Otávio Augusto, que declamou Versos Íntimos na íntegra num dos últimos capítulos de Baila Comigo, na pele de um personagem alcoólatra. O sucesso foi tão grande entre os fãs de Augusto dos Anjos que a declamação acabou sendo reprisada no horário nobre de domingo (25), no Fantástico.

TORTURA – Conjecturas sociológicas à parte, a principal razão do sucesso de Augusto dos Anjos é mesmo a qualidade de sua poesia. Ele encarnou, melhor do que qualquer contemporâneo seu, a máxima de Paul Verlaine (1844-1896): “Antes de tudo, a música”. Essa frase era a profissão de fé dos poetas simbolistas. Augusto dos Anjos, que com muita dificuldade pode ser enquadrado como representante do movimento, é mais musical que seus dois expoentes máximos, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. A sonoridade de seus decassílabos só encontra paralelo com Castro Alves e Gonçalves Dias. Essa é uma das razões de sua popularidade. É fácil decorar seus poemas, mesmo que não se entenda uma palavra ou outra. Associada à exuberância de suas imagens, essa musicalidade é tão palpável que chega a provocar tontura.

Augusto dos Anjos um poeta atual. Num tempo em que os parnasianos falavam de vasos gregos, visões que n”alma o céu do exílio incuba e fidalgos que voltam da caçada, vários versos de Augusto tomam como matéria-prima imagens e objetos do cotidiano, num procedimento que só seria valorizado do modernismo para a frente. O melhor exemplo disso é o poema Tristezas de um Quarto Minguante, penúltimo de Eu, em que descreve a mobília da sala, a lâmpada, o seu quarto, distorcidos sob um olhar expressionista que em tudo vê imagens de horror e decadência. Nesse poema há, também, uma visão iconoclasta do luar, inspirador de todos os românticos e parnasianos. O poeta descreve o quarto inguante, visto através do vidro azul da janela, como um “paralelepípedo quebrado”. Cultor do soneto e do verso metrificado, ele antecipa, com esse poema, uma das profissões de fé da poesia moderna, Satélite, de Manuel Bandeira, que despe esse corpo celeste da carga romântica que ele tem na poesia tradicional.

PESSIMISMO – Para além da musicalidade e dos procedimentos de poesia moderna, a característica de Augusto dos Anjos que mais salta aos olhos é a linguagem rebuscada, cheia de termos científicos. Os detratores de sua poesia costumam enxergar nisso um pouco de pedantismo. Em seu livri Minha Formação no Recife, em que descreve a vida acadêmica da Veneza Brasileira no início do século 20, Gilberto Amado conta que o emprego de termos científicos era moeda corrente nas conversas dos estudantes na época, fascinados com os filósofos da moda, como Haeckel e Spencer. Augusto dos Anjos estudou Direito no Recife. Ao transpor esse vocabulário para seus poemas, nada mais fez do que refletir um comportamento de seu tempo. Além disso, em seus poemas, o emprego de termos rebuscados vai além de mera firula, como em alguns poetas parnasianos. É, antes disso, uma maneira de o poeta destilar seu pessimismo. A comparação com a grandiosidade do universo serve para enfatizar a decadência da sociedade e a impotência do indivíduo.

Essa decadência Augusto dos Anjos sentiu na pele. Nascido num clã de proprietários de terra, Augusto viu o empobrecimento gradativo de sua família, obrigada a hipotecar e mais tarde a vender o engenho Pau d”Arco, sua principal fonte de renda. Augusto teve de sair da Paraíba e trabalhar duro como professor em várias cidades para extrair o sustento da mulher e dos dois filhos pequenos. Na ausência de uma grande biografia do poeta, reconstituir a vida de agruras de Augusto dos Anjos através de suas cartas é um dos principais focos de interesse de sua Obra Completa. Nas cartas e nos textos em prosa ali publicados reconhece-se a mesma linguagem rebuscada da sua poesia, bem como algumas de suas preocupações filosóficas, revelando que o poeta era um só – não se travestia para fazer versos.

Na vida real, o fingidor Augusto dos Anjos gozava de uma saúde razoável, embora fosse algo hipocondríaco. Morreu de uma pneumonia fulminante, e não de tuberculose, aos 30 anos, quando vivia o período mais feliz de sua vida. Conseguira o primeiro emprego fixo, como diretor de um colégio na pequena cidade mineira de Leopoldina, ganhava bem, preparava seu segundo livro e era um ídolo na cidade. O poeta que escreveu “Não sou capaz de amar mulher alguma” era bem casado com a professora Ester Fialho. Não se sabe que tenha tido desilusões amorosas, além daqueles amores platônicos que todo mundo tem na adolescência. Nessa fase da vida, aliás, ele não era tão platônico assim. Tinha um filho legítimo com uma das empregadas do engenho de seu pai. Reais ou inventadas, as dores de Augusto dos Anjos são vazadas em sua poesia com aquela sinceridade capaz de tocar várias gerações diferentes – sinceridade esta que é, em última análise, a qualidade que diferencia os artistas que permanecem.

(Fonte: Veja, 28 de dezembro de 1994 – Edição n.º 1372 – ANO 37 – N.° 52 – CULTURA/ Por João Gabriel de Lima – Pág; 144/146)

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