Agostinho Neto, presidente e patriarca da independência da República Popular de Angola.

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Agostinho Neto (Icolo-e-Bengo, 17 de setembro de 1922 – Moscou, 10 de setembro de 1979), médico, guerrilheiro, presidente e patriarca da independência da República Popular de Angola.

Vida sem paz – História de um médico que preferiu a guerrilha.

Faltavam poucos minutos para a declaração da independência de Angola, à meia noite de 10 de novembro de 1975, e ninguém poderia garantir se a cerimônia acabaria numa festa ou num desastre. Na tribuna de honra, erguida numa extremidade do Campo 1.° de Maio, uma praça cercada de baterias antiaéreas, as personalidades presentes eram escassas, entre elas, com a esposa, o ministro brasileiro Ovídio de Mello.

Numa das fileiras do palanque, de pé, os braços cruzados e junto a companheiros de guerrilha, o comandante Iko Carrera, principal estrategista do MPLA, mais tarde designado ministro de Defesa, mal disfarçava a preocupação em perscrutar o céu de Luanda: na véspera um avião da facção rival FNLA fizera impunemente um voo rasante sobre a cidade, despejando milhares de panfletos. Podria ter lançado bombas.

ADVERSIDADE E BONANÇA – Agostinho Neto só apareceria no último minuto. Ele emergiu de um dos lados do palanque, causando enorme confusão entre dezenas de fotógrafos e cinegrafistas de todo o mundo, que o aguardavam ao longo da passarela estendida na praça. Veio correndo, cercado por duas compactas colunas de guerrilheiros e guarda-costas. Instantes depois, proclamava monocordicamente a independência e o surgimento da República Popular de Angola – embora guerrilheiros da rival FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) ameaçassem de perto a capital e, no sul, forças de outro movimento contrário, a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), estivessem tomando cidade após cidade.

Esse momento ilustra bem o tipo singular de líder africano que Agostinho Neto era: rápido na adversidade, sem pompas na bonança. O rosto redondo sob espessos óculos e a voz pouco dada a variações de tom ou expressões retóricas, ele tinha mais o aspecto de um pacato médico de província do que de dirigente de um país convulsionado pela guerra e colocado no centro de complexos interesses internacionais. Mas possuía autoridade e terminaria vencendo, com apoio de armas soviéticas e de soldados cubanos, os adversários do MPLA. Agostinho Neto, contudo, estava condenado por seu destino a jamais conhecer a paz.

Passados quatro anos, ainda hoje surgem focos de guerrilha da UNITA, no centro e no sul de Angola, fustigam o instável governo de Angola. O país, do ponto de vista militar, vive sob a ocupação e na dependência de 20 000 soldados cubanos, sem os quais o regime de Neto talvez não se sustentaria. E, durante este tempo, o MPLA sofreu graves convulsões internas – sobretudo a dilacerante tentativa de golpe, liderada em maio de 1977 por Nito Alves. Mais uma vez, só a intervenção dos cubanos salvou Agostinho Neto do desastre.

Ele também se diferenciava de outros líderes africanos por possuir uma definitiva formação marxista, iniciada ainda quando estudante de medicina em Lisboa. Nascido na aldeia de Icolo-e-Bengo em setembro de 1922, a uns 100 quilômetros de Luanda, ele pertencia a uma ínfima parcela da população angolana que, com alguma benevolência, poderia ser chamada de elite. Em Portugal, conheceu sua futura mulher, a portuguesa Maria Eugênia. Foi então que se filiou ao PC português. Mas, com o tempo, achou prudente afastar-se da ortodoxia do PCP – e revelar, na chefia do governo angolano, uma flexibilidade e um senso de realismo que surpreenderiam a muitos.

Contra toda expectativa, por exemplo, Agostinho Neto normalizou as relações com o vizinho Zaire, conseguindo com isto prevenir novos surtos de guerrilha ao norte de Angola. E, apesar das pressões de seus aliados soviéticos, mostrou-se disposto a estabelecer relações normais com os Estados Unidos, país que durante a independência apoiou francamente os advresários do MPLA – demonstração de flexibilidade política tão surpreendente como sua repentina aparição na tribuna do Campo 1.° de Maio.

Com a morte de Neto, os angolanos perdem seu principal ponto de união.
Quando emitem boletins médicos, mesmo tratando-se de celebridades mundiais, os soviéticos são sempre avaros em palavras. Porém, esse costume foi quebrado – com o anúncio da morte em Moscou, vítima de câncer. A cautela soviética tinha razão de ser. Apesar das manifestações públicas de cordialidade entre Angola e a União Soviética, as relações dos dois países estavam estremecidas – particularmente pela decisão do chefe de Estado angolano de abrir canais de comunicação com o ocidente, inclusive os Estados Unidos, tirando seu país da exclusiva órbita soviética. E Moscou não quer ver agora comprometida uma influência arduamente conquistada quatro anos atrás – quando Angola, um dos países mais ricos do continente africano, tornou-se o centro de uma complexa disputa internacional, envolvendo não apenas os Estados Unidos e a União Soviética, mas também a África do Sul e o Zaire.

SUCESSÃO – Os riscos de que tudo volte outra vez não são pequenos. Os problemas começam com a sucessão de Agostinho Neto. E não será surpresa se o país ingressar numa dura luta pelo poder.

Tal risco não é estranho na história de um partido várias vezes abalado por lutas internas – a última delas, em dezembro de 1978, responsável pelo expurgo de Lopo do Nascimento, um veterano da guerra de libertação, e de outros quatro membros do gabinete. O detonador da crise foi precisamente o perene combate ideológico entre os partidários do “purismo revolucionário” e os elementos mais moderados. Ante a ameaça de que os guerrilheiros da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) aproveitem a comoção atual para intensificar seus ataques no centro do país, é provável que os soviéticos e particularmente os 20 000 cubanos remanescentes em Angola, terminem influenciando a luta sucessória.

Com isto, também o destino dos países vizinhos poderá ser afetado. Angola é um dos campos de treinamento dos guerrilheiros de Zimbabwe-Rodésia – e se decidir intensificar sua ajuda “à solução armada” contra os regimes brancos da África austral, poderá comprometer as negociações em curso em Londres para a pacificação da região. Não são poucos os interesses em jogo – inclusive para o Brasil. O reconhecimento da independência proclamada por Agostinho Neto foi uma das decisões mais polêmicas da diplomacia brasileira nos últimos anos.

E, no plano econômico, tais relações estavam rendendo dividendos – como o contrato assinado para a construção da rede hoteleira de Angola. O ministro da Educação, Eduardo Portella, representou o Brasil nos funerais de Agostinho Neto em Luanda. O nível de representação das demais delegações, e a ordem de precedência dos anfitriões, já será um primeiro indício dos interesses em conflito na Angola pós-Neto.
O presidente e patriarca da independência de Angola, Agostinho Neto morreu no dia 10 de setembro de 1979, aos 83 anos, de ataque do coração, em Moscou.
(Fonte: Veja, 19 de setembro, 1979 – Edição n.° 576 – INTERNACIONAL – Pág; 38/39)
(Fonte: Veja, 26 de setembro, 1979 – Edição n.° 577 – DATAS – Pág; 114)

EMPOSSADO: dia 21 de setembro de 1979, em Luanda, na Presidência da República Popular de Angola, em substituição a Agostinho Neto, morto dia 10 de setembro, José Eduardo dos Santos, 37 anos; tal como seu antecessor, presidirá também o MPLA-PT (o Movimento Popular de Libertação de Angola, que se transformou em Partido do Trabalho), acumulando com o cargo de comandante-chefe das Forças Armadas; foi ministro das Relações Exteriores e, depois, do Planejamento, e substituía Neto na chefia do governo durante a ausência do presidente, que fazia tratamento médico em Moscou.
(Fonte: Veja, 26 de setembro, 1979 – Edição n.° 577 – DATAS – Pág; 114)

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