Johanna Beyer, foi uma “protominimalista de espantosa originalidade”

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A alemã Johanna Beyer prefigurou, com seu “contraponto dissonante”, o minimalismo e a música eletrônica dos anos 50

Johanna Magdalena Beyer (Leipzig, Alemanha, 11 de julho de 1888 – Nova York, 9 de janeiro de 1944), compositora germano-americana, aprendeu piano e teoria musical na Alemanha, tendo chegado em 1924 a Nova York, onde se fixou.

Lá estudou com alguns dos mais avançados compositores e musicólogos norte-americanos, Dane Rudhyar, Henry Cowell, Ruth Crawford, Charles Seeger. Durante a prisão de Cowell (1937-40), foi sua secretária e tomou conta de suas partituras.

Foi amiga também do pianista e compositor Percy Grainger (1882-1961), subsistindo alguma correspondência com ele trocada como uma das poucas fontes biográficas de que se dispõe sobre Johanna. Morreu pobre, em janeiro de 1944, revoltada com o status quo, “com a injustiça social do período em que vivia” (segundo depôs o compositor Ray Green, que a visitou em seu estúdio-apartamento no Greenwich Village, em 1938), quando ela apenas começava a desfrutar de um pequeno reconhecimento pelos seus pares.

A mais audaciosa dentre as raríssimas composições de Johanna Beyer já divulgadas em disco é a preciosidade chamada “Música das Esferas”: movimento para três instrumentos elétricos ou cordas, rugido-de-leão (instrumento de percussão) e triângulo, de julho de 1938, dada como pertencente ao balé “Status Quo”, de suposta motivação política e satírica. Nessa composição solitária, com duração de cerca de seis minutos, prescrita parcial e opcionalmente para instrumentos elétricos não explicitados, repousa, até aqui, a fama póstuma dessa compositora desconhecida, da qual não há nem sequer fotografia, e que, conforme o resumo biográfico da biblioteca nova-iorquina.

 

Apesar de mais velha que Ruth Crawford, de quem foi aluna, Johanna só começou a compor na década de 30, precisamente quando Ruth, depois de chegar ao ápice da aventura na “melodia de intensidades” do seu Quarteto de Cordas, de 1931, abandonara a composição. A obra de Johanna, ao que tudo indica na linha do “contraponto dissonante” deduzido dos seus mentores, Cowell e Seeger, e da própria Ruth, poderia assim preencher o vazio composicional de que esta só começou a emergir nos anos 50, com a Suíte, em que tenta recuperar o tempo perdido, mas sem o conseguir, o voo cortado pela morte prematura. Teria Johanna Beyer tomado o bastão deixado por sua antecessora e logrado associar em suas obras -e particularmente em seu balé de nome tão sugestivo, “Status Quo”- a guerrilha dissonante à rebeldia social compartilhada com Crawford?

É difícil saber, por ora, e enquanto não for divulgada maior soma de composições e não aprofundado o seu estudo, até que ponto corresponderão elas em qualidade e interesse às expectativas criadas com a maior difusão da polêmica “Música das Esferas”. Mas a simples existência desses seis minutos sonoros e o pouco que se sabe de sua autora já deixam uma bela marca no percurso da música do último século e deste, em que o seu breve registro continua a se inscrever. Mulheres. Pois não foi, antes mesmo de Pound e de Eliot, uma mulher, Gertrude Stein, a criadora de “Melanchta” (1904-5), o primeiro escritor americano modernista, a primeira voz experimental do século 20?

No “Projeto Johanna Beyer”, a partir de um artigo de John Kennedy e Larry Polansky intitulado “Eclipse Total: A Música de Johanna Beyer – Uma Relação Preliminar Anotada”. A listagem integral das obras é fornecida pela Biblioteca Pública de Nova York, onde se encontram os principais manuscritos da compositora: são 53 obras, escritas entre 1931 e 1943, a partir de “Clusters”, para piano, havendo entre as últimas peças alguns “movimentos sinfônicos” e uma composição, “Três Movimentos para Percussão”, de 1939, dedicada a John Cage. Há também várias obras para voz e acompanhamento, quase todas sobre poemas de Carl Sandburg, autor predileto de Ruth Crawford, que já musicara com brilho alguns de seus textos. Na opinião de Kyle Gann, em seu bem informado “American Music in the Twentieth Century” (New York, Schirmer, 1997), a compositora utiliza ousadamente o ruído e antecipa o minimalismo com seus ciclos rítmicos e suas texturas estáticas. Em outro texto, Kyle Gann se refere a ela como uma “protominimalista de espantosa originalidade”.

Johanna Beyer que nasceu em Leipzig, em julho de 1888, faleceu em Nova York, em janeiro de 1944.

 

Cage e Varèse 
A versão da “Música das Esferas” que podemos ouvir constitui a primeira faixa do CD “New Music for Electronic and Recorded Media -Women in Electronic Music – 1977”. A edição da Composers Records Incorporation (CRI 728), de 1997, é uma remasterização digital do LP produzido 20 anos antes por Charles Amirkhanian, musicólogo, percussionista e “sound poet” de larga atuação nos domínios da música experimental, responsável direto pela produção artística das principais e pioneiras gravações de Conlon Nancarrow (1912-1997).

Do disco participam várias compositoras: entre outras, ali está Pauline Oliveros com a histórica “Bye Bye Butterfly” (1965), para fita magnética, colagem de sons e ruídos elaborados com osciladores e amplificadores, onde estilhaços da soprano empostada de “Madame Butterfly” são engolidos pelos silvos das frequências sinusoidais, num adeus ao passado da música e da discriminação feminina; lá encontramos também Laurie Anderson, em sua primeira aparição num LP comercial, com duas pequenas peças satíricas, “New York Social Life” e “Time to Go”, ambas de 1977.

Allan Strange, compositor e membro do The Electric Weasel Ensemble, arranjou para sintetizadores, controladores de frequências e outros aparatos, organizados por Donald Buchla, a “Música das Esferas” de Johanna Beyer.

Respondem eles pelos “instrumentos elétricos” solicitados pela partitura e que, segundo o arranjador, poderiam ser o teremim ou as Ondas Martenot, já bem conhecidos à época. A percussão, “rugido-de-leão”, também é produzida eletronicamente nessa transcrição, sendo o triângulo o único instrumento acústico, tocado pelo próprio Amirkhanian. As indicações da partitura chegam a demandar um “acelerando” gradual de 52 a 208 semínimas por minuto num período de 54 compassos com retorno posterior, também gradual, ao pulso do início, o que foi resolvido com o auxílio de um metrônomo, controlado manualmente e acoplado a um sequenciador, para mais exatidão das variações métricas.

O que se ouve é um inquietante continuum ondulado de glissandos e ostinatos rítmicos que paradoxalmente não deixa de lembrar a “Imaginary Landscape” (Paisagem Imaginária) nº 1 que John Cage criaria um ano depois, em 1939, composição para dois toca-discos de velocidade variável, gravações de frequências, piano em surdina e címbalo, posteriormente executada com osciladores e teclados eletrônicos, e que é considerada a peça pioneira do gênero.

Não é improvável que essa releitura à distância do “opus” pré-eletrônico de Johanna Beyer tenha sido contaminada pela parafernália cagiana e por tudo o que ocorreu com a “eletronik musik”, a música eletrônica dos anos 50, aliás, muito mais complexa e sofisticada do que os subprodutos que a juventude de hoje conhece como “música eletrônica”. Mas aí está uma interrogação musical que passa a coexistir com a obra de Cage, um tanto como as “Rítmicas” do cubano Amadeo Roldán com a “Ionisation” de Varèse.

(Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp – FOLHA DE S.PAULO – MAIS/ por Augusto de Campos – 16 de setembro de 2001)

Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de “Música de Invenção” e “Despoesia” (ed. Perspectiva), entre outros livros.

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