Henry Cowell, notável compositor norte-americano cujas ideias e criações tanto contribuíram para mudar o panorama da música do nosso tempo, a música de “agora”.

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Henry Cowell (Menlo Park, Califórnia, 11 de março de 1897 – 10 de dezembro de 1965), notável compositor norte-americano cujas ideias e criações tanto contribuíram para mudar o panorama da música do nosso tempo, a música de “agora”. Aquele a quem John Cage definiu, certa vez, como “o abre-te Sésamo da Música nova da América”.

 

Henry Cowell – notável compositor norte-americano cujas ideias e criações tanto contribuíram para mudar o panorama da música do nosso tempo, a música de “agora”. (Foto: Getty Images/ Divulgação)

 

Henry Dixon Cowell nasceu em Menlo Park, Califórnia, em 11 de março de 1897, tendo morrido em 1965. Desenvolveu intensa atividade como compositor, musicólogo, professor de música, crítico e produtor musical. É o grande teórico dos “clusters” (cachos de sons), agregados sonoros produzidos no piano com emprego do antebraço, do punho ou da mão espalmada, uma prática inteiramente nova e depois dele adotada com frequência pelos compositores modernos.

Foi também um dos primeiros, senão o primeiro, a integrar às suas composições a produção de sons diretamente tocados na harpa do piano. Essa “despianização” do piano, ou a redefinição e reorientação de suas potencialidades no sentido do aproveitamento de suas qualidades percussivas e repercussivas, apenas vislumbrada nas “Noces” de Stravinski, seria objeto de uma coerente e concentrada perquirição por Henry Cowell e através dele chegaria a outro grande inventor da música contemporânea, o seu discípulo e conterrâneo (também californiano) John Cage, e a outras grandes invenções, como o “piano preparado”.

Cowell estudou música inicialmente em Berkeley e Stanford (com o renomado musicólogo Charles Seeger). Tinha apenas 14 anos quando realizou a sua primeira composição com “clusters”, “Adventures in Harmony” (1911). No mesmo ano saiu a sua primeira obra publicada, “The Tides of Manaunaun”, também com emprego de “clusters” e que ele executaria pela primeira vez em 12 de março do ano seguinte, no San Francisco Musical Club, um dia depois de ter completado 15 anos. “Fui influenciado por Ives, Schoenberg, Stravinski e muitos outros antes mesmo de tê-los ouvido”, comentaria anos depois humoradamente o compositor, acrescentando: “Há uma força maior numa ideia quando ela brota ao mesmo tempo em vários lugares diferentes”.

Incentivado por Seeger, tratou de elaborar um livro que compendiasse e sistematizasse suas idéias sobre harmonia, ritmo e “clusters”. Assim nasceria o hoje clássico “New Musical Resources”, que ele completou em 1919, mas que só conseguiu ver publicado em 1930. Uma segunda edição, organizada e comentada por Joscelin Goldwin, veio a ser divulgada em 1969 pela histórica editora de vanguarda, Something Else Press, de Dick Higgins, a mesma que se envolvera na publicação de obras raras da vanguarda e de novas obras provocativas, como as de Gertrude Stein e de John Cage e a “Anthology of Concrete Poetry”, selecionada por Emmet Williams e estampada dois anos antes.

“New Musical Resources” trata, mais precisamente, da influência da série harmônica, ou série dos harmônicos -os sobretons produzidos acima da nota fundamental pelas vibrações, quando um som é emitido-, na produção musical e dos recursos por ela oferecidos para a música moderna. Como se sabe, os harmônicos se relacionam ao som fundamental, e entre si, em proporções matemáticas, e se estendem indefinidamente, soando ao mesmo tempo que ele ou depois dele. Cowell esclarece que os instrumentos antigos não eram tão ricos em harmônicos como os modernos, o que induzia a pensar que somente a tríade maior, formada pelos sons mais baixos da série harmônica, era consonante. Os instrumentos atuais, fazendo ouvir harmônicos mais altos, tornam o ouvido mais familiar com o que antes era considerado dissonante. Se combinarmos os harmônicos em acordes, verificamos que o ouvido tende a aceitar mais prontamente as combinações feitas com os tons mais baixos da série harmônica.

Mas as chamadas dissonâncias nada mais são do que o resultado das combinações propiciadas pelos harmônicos superiores. Assim, conclui Cowell, a aceitação ou rejeição deste ou daquele complexo sonoro depende em grande parte da familiaridade do ouvinte com tal acorde, o que aponta para a relatividade dos conceitos de consonância e dissonância, fenômenos produzidos naturalmente pela vibração sonora e intrinsecamente articulados. Toda a música moderna se assenta na “emancipação da dissonância” (Schoenberg) e na incorporação dos mais variados segmentos da experiência auditiva, não só o som consonante ou dissonante, mas o não-som, o ruído e o silêncio. E todo um movimento ou uma tendência de compositores da quadra mais recente, relacionados, direta ou indiretamente, à chamada música “espectral” -de Scelsi e Nono a Radulescu e Brizzi-, além de outros, independentes, como Ligeti e Stockhausen (este, especificamente, em “Stimmung”) vem-se dedicando à exploração das virtualidades dos harmônicos superiores ou das harmonias sobre acordes de segunda. Daí a relevância que assume o tratado de Cowell, como um documento lúcido e premonitor com relação aos desenvolvimentos da música atual.

Mas não se pense em Cowell como um mero anatomista de fenômenos acústicos e musicais. Ele deve ser visto, antes, como um típico “inventor” americano, da índole de Ives e Cage, sendo em grande medida um autodidata que criou música altamente estimulante e inspiradora. Excelente pianista, começou sua carreira em 1912, em San Francisco, executando suas próprias composições. Desde 1923 fez muitas apresentações na Europa e nos Estados Unidos, tendo estreado no Carnegie Hall com um concerto fulcrado em suas músicas para “clusters” em 1924. Na década de 30, colaborou com Leon Theremin na criação de um aparato, o Rhytmicon, capaz de tocar 16 ritmos ao mesmo tempo, viabilizando muitos dos seus experimentos, que pareciam impraticáveis na fase pré-eletrônica e pré-digital. Não parou nos “clusters”.

Cage credita-lhe algumas das primeiras incursões na música indeterminada, em composições como “Mosaic Quartet” e “Elastic Musics”, que admitem intervenções optativas do intérprete. Por outro lado, era um etnomúsico: interessou-se desde cedo por música das mais diversas procedências, abeberando-se em fontes irlandesas, a princípio, em função de seus ascendentes, mas pesquisando também música do Japão, da Índia, do Irã, da Islândia e de regiões menos frequentadas dos próprios Estados Unidos. Foi, na verdade, um dos primeiros estudiosos americanos a aprofundar-se no conhecimento da música oriental, preocupação que transmitiu a alunos como John Cage e Lou Harrison.

Lecionou em diversas escolas e universidades e dirigiu várias entidades ligadas ao ensino, à divulgação, à edição e ao patrocínio de compositores modernos os Estados Unidos. Além de “New Musical Resources”, publicou dois outros livros importantes, “American Composers on American Music” (1933) e (com sua mulher Sidney Cowell) “Charles Ives and His Music” (1955), que contribuiu decisivamente para a revisão crítica do patriarca da música moderna americana.

Em 1927, fundou uma publicação especializada, “New Music”, na qual divulgou pela primeira vez inúmeras partituras modernas, entre as quais a “Segunda Sonata para Piano” (“The Airplane”), de Antheil, “lonisation”, de Varèse, e a canção “Liebste Jungfrau”, do ciclo de canções op. 17 de Webern (chegou até a tentar trazer o compositor vienense para os Estados Unidos, em 1931, por intermédio de Adolph Weiss, discípulo americano de Schoenberg). Sempre voltado para os novos caminhos, escreveu regularmente para “The Musical Quarterly” e nessa revista publicou, em janeiro de 1952, a análise mais abrangente e detalhada das obras de Cage que até então se produzira, um estudo que ainda hoje se revela atual e pertinente.

A música generosamente exploratória de Cowell é abundante. Não é fácil fazer um juízo absoluto do valor do seu largo acervo de produções, até mesmo pela falta de mapeamento sonoro completo e, ainda mais, pela dificuldade de se obter no Brasil aquilo que já está registrado. Conheço-a, no entanto, há muitos anos, através de um dos seus melhores documentos, a gravação de 19 obras para piano executadas pelo próprio Cowell, num LP de 1951, do selo Circle Records (“Piano Music of Henry Cowell”).

O LP original se fazia acompanhar de um disco-filhote, com um depoimento do próprio compositor, comentando suas obras. A gravação, completa, veio a ser reeditada em 1963 e mais recentemente em 1993 pela Smithsonian/Folkways Recordings. Aí estão algumas das composições mais representativas da inventividade de Cowell. A inacreditavelmente precoce “Tides of Manaunan”, já mencionada, escrita entre 1911-12. “Dynamic Motion” (1914-15), em módulo de “machine music”, explorando as dissonâncias dos harmônicos superiores numa sucessão de “clusters” obsessivos e progressivos.

Na mesma linha de agressividade, “Antinomy” (1914), com “clusters” massivos e furiosos e melodias dissonantes; ou “Advertisement”, do mesmo ano, com vertiginosa “clusters” de movimento contrário, em crescendo e diminuendo; e “Fabric” (c. 1917), em que cada uma das três vozes tem um ritmo independente, 5 batidas na linha melódica mediana contra 6 ou 7 na linha superior e 3 ou 4 na inferior em um mesmo compasso, formando um intrincado tecido polirrítmico.
Em pólo oposto, os glissandos repousantes de “Aeolian Harp” (1923), tocada diretamente nas cordas do piano, seguida de “Sinister Resonance” (c. 1930), esta, de volta ao teclado, mas com manipulação das cordas de modo a obter harmônicos imprevistos e contrastantes ressonâncias percussivas; ou ainda, “Fair Answer” (1924), em que se desenvolve um doce diálogo de ecos entre teclas e glissandos, “clusters” e cordas; ou as orientalizantes “Amiable Conversation” (1917) e “Snows of Fujyiama” (1922), que utilizam escalas e “clusters” pentatônicos.

 

Uma tensão subliminar entre voz e som parece animar a impressionante “The Banshee” (c. 1925), que alude à criatura fantástica do fabulário irlandês, o espírito anunciador da morte: “gemidos” quase-humanos e timbres pré-eletrônicos brotam das cordas esfregadas longitudinalmente ou beliscadas, segundo várias técnicas, conjugadas à compressão silenciosa dos pedais do piano (por um segundo executante). Em contrapartida, em “Harp of Life” (1924), que simula a grande harpa cósmica da mitologia céltica, criadora da vida, os “clusters” arpejados crescem em ondas trovejantes a culminar em vibrações “simpáticas” de sons-fantasmas produzidos pela pressão dos dedos nas teclas, sem tocar. Uma dialética de som e silêncio que se expande em “Tiger” (c. 1928), obra sugerida pelo poema de Blake, em que macro-“clusters” dissonantes (que, como no caso anterior, chegam a atingir quatro oitavas, exigindo do intérprete o uso dos dois antebraços) se dissolvem nos macrossilêncios plenos de emanações “simpáticas” dos agregados negativos. Música maravilhosa e fascinante, capaz de silenciar toda e qualquer “clusterfobia”…
Uma curiosidade. “Tiger” foi editada pela primeira vez na Rússia pré-Stálin, na década de 20, tendo sido Cowell o primeiro pianista americano a se apresentar na antiga URSS, onde a “música da máquina” tinha, àquela altura, ativistas como Prokofiev e Mossolov, que em 1927 acertavam, os dois, o passo, respectivamente, o primeiro com “Zavód” (Fábrica), composição originada do balé “Aço”, conhecida no ocidente como “Les Fonderies d’Acier” ou “The Steel Stride”…
Não é impossível que Ustvólskaia, a “dama do martelo”, que faz largo uso dos “clusters” em suas obras, tenha tomado conhecimento da obra de Cowell, cuja partitura, hoje publicada pela editora Associated Music Publishers, de Nova York, ostenta ainda as instruções alternativas em russo. Assim parece pensar Jean Vermeil, ao escrever a sua introdução às “Seis Sonatas para Piano”, de Ustvólskaia, na execução de Marianne Schroeder, aventurando uma genealogia constelacional para as obras pianísticas da enigmática compositora russa, em que entrariam elementos da anti-retórica de Satie, refletida no ascetismo da música de Cage, e instigações da linguagem dos construtivistas russos como Roslavetz e Lourié, dos sonoristas da máquina como Mossolov e Prokofiev (período parisiense) e dos “clusters” compactos de Cowell.
Outra composição antológica de Cowell é “Ostinato Pianissimo” (1934), gravada pela primeira vez num LP do selo Mainstream do fim da década de 50, “Concert Percussion for Orchestra”, com The Manhattan Percussion Ensemble, dirigido por Paul Price e John Cage -um item de colecionador, onde se encontram ainda, entre outras obras de Cage, Lou Harrison e William Russell, duas das “Rítmicas” (1930), do compositor cubano, morto precocemente, Amadeo Roldán (Paris, 1900-Havana, 1939), que precedeu Varèse na composição de música só para percussão.
“Ostinato Pianissimo” foi concebida para um conjunto percussivo incomum: dois “string pianos” (pianos de cordas), nos quais as cordas, embora percutidas normalmente por martelos, são abafadas pelo toque das mãos, oito bacias de arroz de várias alturas, xilofone, marimba, dois blocos de madeira, um tamborim sem os retintins usuais, um güiro, dois bongós, três tambores e três gongos. “As partes dos vários instrumentos têm comprimentos diferentes e cada uma delas é repetida, constantemente, em diferente forma rítmica pelas 11 páginas da partitura”, explica-se na apresentação do disco. Uma fantasia obsessiva monotemática, mas resolvida com uma técnica até certo ponto oposta à do “Bolero”, de Ravel, num encontro de desencontros polirrítmicos, em que os timbres e pulsos não só se aditam, mas se atravessam assimetricamente, gerando inesperadas tensões e surpreendentes complexidades texturais.
Novas e ricas leituras das históricas invenções pianísticas de Henry Cowell foram empreendidas por Steffen Schleiermacher num CD da Hat Hut Records, de 1993, que reuniu Cowell, George Antheil e Leo Ornstein sob a rubrica antheiliana “The Bad Boys”!. Ao lado de peças hoje famosas, como “The Banshee”, “Aeolian Harp”, “The Voice of Lir” e outras já interpretadas no disco modelar de Cowell, encontramos aí outras instigantes aventuras da primeira fase: “Time Table” (1914/15), que completa a série de “encores” de “Dynamic Motion”, e “The Hero Sun” (1922). Antheil e Ornstein formam, com Cowell, uma gangue respeitável de ultramodernistas americanos que faz jus ao título do disco.
Menos conhecido que Antheil, Leo Ornstein, nascido na Rússia em 1892, data de morte não assinalada, é um caso curioso. Pianista e compositor como Antheil, demitiu-se também como este, na maturidade, das estripulias iniciais. Mas as peças da juventude irada são cheias de vida: “Wild Men’s Dance” (1914) e “Suicide in an Airplane” (1915), que aqui aparecem juntamente com as “Impressions de Notre Dame”, da mesma época, são bem anteriores às mais ou menos homônimas de Antheil (“Sonata Sauvage”, 1922/23, “The Airplane Sonata”, 1922), de quem é executada ainda a colagística “Jazz Sonata”, também de 22.
Todas elas criações diamogênicas, repletas de choques dissonantes, arremetidas escaliformes, pulsantes arritmias e enxurradas de células repetitivas; próximas da linha da “dynamic motion” de Cowell, prenunciam as tropelias polirrítmicas das pianolas desenfreadas de Conlon Nancarrow.
Em 1953, o compositor e crítico Virgil Thomson assim se pronunciava a respeito do seu colega: “A música de Cowell recobre um âmbito mais extenso em expressão e técnica do que qualquer outro compositor vivo. Seus experimentos em ritmo e harmonia e sonoridades instrumentais, iniciados há três décadas, foram considerados extravagantes por muitos. Hoje constituem a bíblia dos jovens e, para os conservadores, ainda são ‘avançados’. Nenhum outro compositor do nosso tempo produziu um corpo de obra tão radical e tão normal, tão penetrante e tão compreensivo”. Mais tarde, em seu livro “American Music Since 1910”, publicado em 1970, acrescentaria: “Sua música não é complexa, mas ela canta. Não é extremamente refinada, mas tem estrutura. Não é também extraordinariamente ambiciosa, mas tem presença. E nunca é artificial ou vulgar ou obtusa ou falsamente inspirada. Cowell foi também um grande homem por sua mente atuante e sua conduta ética, bem como pela abundância de sua produção musical de alto nível”.
Valham estas notas para celebrar, ainda que sem eco ou apenas com “sinistras ressonâncias”, a obra deste compositor original e único, a quem a música do século 20 tanto deve.

Henry Cowell faleceu em 10 de dezembro de 1965.

(Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp – FOLHA DE S.PAULO – MAIS/ por Augusto de Campos / ESPECIAL PARA A FOLHA – 8 de junho de 1997)

Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de “Música de Invenção” e “Despoesia” (ed. Perspectiva), entre outros livros.

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