Golbery do Couto e Silva, chefe do Gabinete Civil dos presidentes Ernesto Geisel e João Goulart

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O bruxo fez sua última arte

 

O general do silêncio fez com que se soubesse como era o Brasil em que ele mandou como poucos.

 

Chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI)

 

 

Golbery do Couto e Silva (Rio Grande, 21 de agosto de 1911 – São Paulo, 18 de setembro de 1987), fundador do Serviço Nacional de Informações, chefe do Gabinete Civil dos presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo, foi um dos homens mais poderosos, mais temidos e mais detestados da história republicana. Chamavam-no “Satânico Doutor Go” pela fama de bruxo político que cultivava, não aparecendo ao público e concebendo complexas articulações políticas nas quais nunca oferecia, nem sequer aos aliados, uma visão completa da manobra pretendida.

 

Chefe do SNI de junho de 1964 a março de 1967. Exerceu a chefia do gabinete civil de 1974 a 1981, nos governos dos presidentes Ernesto Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo.

 

Na tarde do dia 19 de setembro, quando seu corpo deixou o Tribunal de Contas da União, do qual era ministro aposentado, em direção ao Cemitério do Campo da Esperança, em Brasília, pela primeira – e última – vez, em mais de vinte anos, sabia-se para onde Golbery ia. “Ele sabia tudo”, comentou o presidente José Sarney, que o conhecia desde 1964.
Duas horas depois de ter sido lançado numa dolorosa agonia por um colapso respiratório, morreu em São Paulo, o general Golbery do Couto e Silva. Tinha 76 anos e estava devastado por um câncer de pulmão. Dois dias antes, num dos seus últimos momentos de lucidez, balbuciara a seu amigo Heitor Ferreira: “O processo complicou esta tudo parando”.

 

 

Saber, esse era precisamente o negócio de Golbery, e poucas pessoas tiveram como ele a sorte de reunir a uma vontade tão grande oportunidade. Criou o SNI, viveu no coração do governo do marechal Castello Branco e foi um dos coveiros do regime Constitucional de 1946. Aos poucos percebeu que participava da construção de uma ditadura. Foi para ostracismo em 1967 com a eleição do marechal Costa e Silva e ressurgiu das cinzas em 1972, quando, em pleno governo do general Emílio Medici, ele sabia duas coisas: uma, que o próximo presidente da República seria seu amigo Ernesto Geisel; outra, que a ditadura ia acabar.

 

 

Sua marca era saber, mas nunca contar. Ao mesmo tempo que construiu a lenda de que era capaz de saber de tudo, forjou a imagem do silêncio. Esse oficial de informações compulsivo no sigilo morreu deixando a surpresa de um segredo que guardou por mais de vinte anos. Ao contrário do que se supunha, o homem mais discreto do regime mais recluso já montado no Brasil era precisamente a pessoa que alimentava o mais detalhado registro do que acontecia. Desde 1961, quando ocupou a chefia do gabinete da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, o Governo Jânio Quadros, o coronel Golbery do Couto e Silva guardava consigo os papéis mais relevantes da história que via passar diante dos seus olhos. Tinha um estranho hábito: conservava consigo até mesmo rabiscos feitos por interlocutores durante as conversas. Assim, em julho de 1961, quando Jânio pediu aos ministros militares que preparassem um plano para a possibilidade de o Brasil ter que ocupar as Guianas, o coronel guardou os famosos bilhetinhos.

 

 

Golbery alimentou, deliberada e metodicamente, um diário mantido por Heitor Ferreira desde meados de 1964 até setembro de 1987. Não só autorizava seu assistente a registrar tudo o que ouvia dele, mas também lhe narravas conversas inteiras com o objetivo adicional de vê-las guardadas. No mês de setembro de 1987 Golbery fez sua última entrada nesse diário, que, se publicado em forma de livro, ocuparia um volume de 1500 páginas. “O senhor quer que eu faça alguma coisa?”, perguntou-lhe Heitor. “Você já sabe tudo”, respondeu o general.

 

 

Dos papéis de Golbery não resulta um “Satânico Dr. Go”, maquilado para a moda do novo regime. Pelo contrário, lá está um chefe do SNI que chamava de “campanha” as denúncias de torturas feitas por presos políticos em 1964. Em mais de 200 documentos de análise da situação nacional, são raros aqueles em que se acha um político essencialmente preocupado com a vontade popular. Há ali o exemplo perfeito e acabado de homem que, no poder, se preocupava muito mais em organizar sua própria cabeça do que em tratar de organizar a cabeça dos outros. Por isso, em 1983, quando era colocado diante da inviabilidade histórica da candidatura Paulo Maluf, da qual era um dos coordenadores, respondia; “É possível que seja assim, é possível que aconteça alguma coisa”. Um ano depois, com a fotografia do comício das diretas realizado no Rio de Janeiro estampada na primeira página dos jornais espalhados sobre sua mesa, admitia: “É, essa coisa de que falei pode estar acontecendo, mas, de qualquer forma,multidão não é meu negócio”. E continuou com Maluf, enquanto boa parte da cúpula militar que o chamava de contra-revolucionário, por ajudar Geisel a acabar com a censura à imprensa, a tortura e o AI-5, se aproximava secreta e sorridente de Tancredo Neves.

 

 

Do período Castello Branco percebe-se, pelos papéis e pelos comentários deixados por Golbery, que tanto quanto o então chefe do Gabinete Militar, Ernesto Geisel, recusavam-se apoiar candidatura Costa e Silva por diversas razões. Havia motivos de ordem pessoal, rancores de natureza histórica e até mesmo fatos de natureza médica (o marechal estava “mais estúpido que casa velha”, segundo assegurou um médico que o examinou). Acima de todos eles, porém, havia uma certeza. Ela levava Golbery a dizer em fevereiro de 1966, quando já fora obrigado a dormir armado no quarto dos ajudantes-de-ordens, depois que chegou ao Palácio de Laranjeiras a notícia de que “um bando de malucos” ia tomá-lo à bala: “Eu prefiro o show-down e que o Costa e Silva dê um golpe e assuma o poder agora a que haja uma eleição que cooneste tudo defira por um ou dois ou até quatro anos o golpe e a ditadura”. O presidente Castello Branco negou-se a partir para um show com o ministro da Guerra, e Golbery comentou: “Este é um país danado mesmo. Isto tudo andou, andou, e caiu nas mãos do ‘seu’ Arthur, um homem que nunca se destacou no Exército, oportunista.” Quanto à ditadura, ela veio menos de três aos depois, em dezembro de 1968.

 

 

O peso da derrota imposta por Costa e Silva a Castello, Geisel e Golbery surge como um verdadeiro manual de voo para o que foi o processo de abertura de Geisel. Desde que começou a trabalhar na articulação da candidatura Geisel, andou em três direções. A primeira, mais fácil, seria a libertação da imprensa. A segunda, o fim da tortura. A terceira, o retorno da disciplina do Exército, que em 1969 foi colocado na ridícula situação de servir de colégio eleitoral para a escolha o sucessor de Costa e Silva, abatido por um derrame, em pleito que, além de espúrio, foi fraudado dentro das próprias normas iniciais estabelecidas pelo Alto Comando.

 

 

Armando-se para acabar com a Censura, Golbery colecionava artigos vetados e em seus papéis há pelo menos uma reportagem de O Estado de S. Paulo, enquanto em sua agenda há um jantar com um dos diretores do jornal. Armando-se para acabar com a tortura, colecionava casos indiscutíveis. Primeiro, os que lhe levava o coronel Francisco Homem de Carvalho, comandante da Polícia do Exército do Rio de Janeiro, de que o DOI era hóspede. Depois, recorrendo ao professor Candido Mendes de Almeida, que lhe levava primeiro denúncias da Igreja e, finalmente, em fevereiro de 1973, ao próprio cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, de São Paulo. Ao lado de tudo isso, passou pelas mãos de Golbery e de Geisel um relato das torturas sofridas pelo oposicionista Cid Silveira, que fora colocado numa das “celas inglesas” do DOI convivendo com seus excrementos num cubículo branco e sendo submetido a variações de temperatura, som e luz.

 

 

Segundo o depoimento de Golbery, Geisel sentiu um mal-estar ao ler o papel. O retorno da disciplina aos quartéis, no entanto, ficou inteiramente a cargo de Geisel. Golbery nunca se meteu nesse assunto, até mesmo porque seu nome era maldito no Exército , onde sempre fora causado de “besta” por ler muito, de “politiqueiro” por ter dirigido a SNI e de “corrupto” por ter presidido a Dow Química, subsidiária brasileira da multinacional do mesmo nome. “No Exército você não pode sair da média, eu saí esse é o preço”, dizia o general, para engatar em seguida “O que não se deve é que pedi passagem para a reserva em setembro de 1961, quando vi a capitulação diante de João Goulart. Vi como se capitulou. Saí por acaso”. Pode-se dizer que Golbery não era estimado pelos comandantes militares, mas ele também nunca escondeu que a recíproca era verdadeira.
Mudo a respeito de tudo, até mesmo de sua vida pessoal, Golbery deixou dona Esmeralda, viúva, três filhos, Golbery Júnior, Vera e Maria Angelica. Também era discreto nas amizades, como a do médico Guilherme Romano, que o acompanhou no último avião à Brasília, e Edmundo Safdié, dono do Banco Cidade, onde Golbery instalou-se ao deixar o governo.

 

 

De 1975 a outubro de 1977 Golbery dedicou-se a convencer Geisel de que deveria demitir o ministro do Exército, general Sylvio Frota. No fim de 1975, quando achou que a batalha estava perdida. Preparou-se para sair do governo. Meses depois, quando Geisel fulminou o comandante do II Exército, general Ednardo D’Avila Mello, depois da morte de um preso político nos porões do DOI de São Paulo, o chefe do Gabinete Civil se viu alentado. Se tivesse dependido dele, Frota teria saído antes. No entender de Geisel, porém a hora certa foi a hora por ele escolhida e, encerrando o que poderia transformar-se numa reunião bizantina, Golbery reconhecia: “Quando uma coisa da certo não adianta reparar detalhes”.

 

No hospital Sírio Libanês, antes de ir para a mesa de operações, ele acrescentava: “Além do mais, eu sempre fui na vida um oficial de Estado-Maior, daquele tipo que confia no chefe e faz o plano. Se ele é aceito, bem. Se não é, resta obedecer e ir adiante, sem reclamar”. Na sexta-feira, ao saber da morte de seu amigo, Geisel recusou-se a falar à imprensa: “Estou muito triste e emocionado”, disse o ex-presidente. Há cerca de um mês visitara Golbery no hospital antes de sua morte. Não o via desde 1983, quando seu ex-colaborador tomara caminho da candidatura Maluf.

 

 

A opção de Golbery por Maluf fez com que os dignitários da nova ordem política do país deixassem de ver nele o “mago da abertura” para recolocá-lo na condição de “fundador da SNI”, quando, na verdade, aquilo que o torna interessante é precisamente o fato de ter sido as duas coisas, pela mesma razão, num só período de existência. Com uma das cabeças mais privilegiadas do país, curiosidade de vestibulando e atenção de surdo-mudo, Golbery viveu na sombra, tirando partido disso, mas guardando os papéis que, um dia, haveriam de explicar esse estranho personagem.
A partir do aparecimento de seus documentos, Golbery que se venha a desenvolver algum tipo de atividade política mais sofisticada no Brasil.

 

 

Veja-se, por exemplo, o caso do presidente da câmara dos deputados, Ulysses Guimarães. O todo-poderoso presidente do PMDB , colocado diante de uma pergunta sobre a importância que dava ao trabalho de Golbery pela abertura, respondeu:
“Esse assunto de abertura não é minha especialidade, a não ser a que nós fizemos”.

Tudo bem, mas, quando era presidente de um PMDB atemorizado pelo instrumento ditatorial do AI-5, pelas cassações de mandatos e pelo risco de um novo golpe de coronéis que faziam panfletagens contra Golbery e hoje estão no SNI, Ulysses pensava diferente. Em junho de 1975, ao saber que Golbery, atacado por um descolamento da retina, poderia sair do governo, Ulysses assegurou:
“Lamentamos que tenha sido atingido pela doença um homem que luta pelo restabelecimento da democracia no país. As informações que temos dão conta de que o general é um homem de profundas convicções democráticas. Sua doença aumenta nossas apreensões”.

Ainda bem que Golbery guardou o exemplar do seminário Opinião que publicou essa declaração de Ulysses. O bruxo, quando guardava seus papéis, sabia que fazia sua última arte.

Desse bruxo que atravessou a política brasileira em silêncio, colecionando todos os ladrilhos de seu percurso, pode-se dizer o que o escritor inglês Aldous Huxley disse do Padre José, personagem que dá título ao seu romance Eminência parada (do qual, estranhamente, Golbery não gostava de falar):

“Padre José foi capaz de retirar, das profundezas de sua própria experiência, o critério final e objetivo e, relação ao qual sua política pôde ser julgada. Foi um dos forjadores de um dos mais importantes elos do nosso desastrado destino: e ao mesmo tempo foi um daqueles a quem foi dado conhecer como o forjar de tais cadeias pode ser evitado”.

(Fonte: Veja, 23 de setembro de 1987 – Edição 994 – OS PAPEIS SECRETOS DE GOLBERY/ Por Elio Gaspari – Pág. 20)

(Fonte: https://exame.abril.com.br/brasil – BRASIL / Quem eram e o que faziam os agentes que mandavam na ditadura / Por Mariana Desidério – 10 dez 2014)

(Fonte: Revista Veja, 15 de dezembro de 1999 – ANO 32 – Nº 50 – Edição 1628 – BRASIL / MILITARES / Por Leonel Rocha – Pág: 50/57)

 

 

 

 

 

 

 

 

Leitor de resultados

Biblioteca de Golbery mapeia o pensamento de um homem fascinado pelas engrenagens do poder

Bruxo da ditadura, o general Golbery do Couto e Silva foi mais do que o principal articulador de bastidores dos governos Castello Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo. Destacou-se de seus pares porque, além de maquinar, interessou-se em estudar o funcionamento da máquina. Pensou o regime militar como poucos.

Preferiu, no entanto, guardar o que pensava para si próprio, usando com parcimônia aquele recurso que torna os pensamentos compartilháveis: a palavra. Quase não dava entrevistas e, quando dava, media cuidadosamente o que iria dizer, para não revelar nada além do que lhe interessava. Deixou dois livros que se destacaram, “Planejamento Estratégico” (1955) e “Geopolítica do Brasil” (1966) – de resto, tão impenetráveis quanto ele próprio.

A trajetória de um bruxo

A evolução do pensamento do general Golbery através dos governos militares

FASES DE GOLBERY

Fase Castello: de 1964 a 1967, no governo Castello Branco, foi o chefe do Serviço Nacional de Informações

O que lia: Friedrich Ratzel, alemão, pai da geopolítica; Anatol Rapoport (1911-2007), estrategista da teoria dos jogos

Como era o Brasil: Em 1964, um golpe militar derruba o governo de João Goulart. Golbery cria o SNI

O que pensava Golbery: Havia escrito Planejamento Estratégico

(Fonte: Veja, 10 de junho, 1992 – ANO 25 – Nº 24 – Edição 1238 – CULTURA/ Por Eliane Azevedo – Pág: 88/89)

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