Ezra Pound, figura decisiva no processo que desmontou a sensibilidade literária do século XIX

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Pound: “O que amas de verdade é tua herança verdadeira”

Ezra Pound (Hailey, Idaho, 30 de outubro de 1885 –- Veneza, Itália, 1° de novembro de 1972), consagrado poeta 

Estudante de Artes e Ciência na Universidade da Pensilvânia, Pound era um garoto americano de 15 anos quando decidiu ser poeta. Como acreditava que o “impulso” que o levava à poesia era divino, mas que a técnica dos versos era um trabalho humano a ser conquistado, Pound traçou então um plano ambicioso: aos 30 anos ele saberia mais sobre poesia que qualquer homem vivo.

 

Cumprido o prazo, Pound sabia nove línguas, havia publicado mais de dez livros, articularia dois movimentos literários, o imagismo e o vorticismo,  e era um poeta. Seja como crítico, tradutor, incentivador de novos escritores ou como poeta, Pound é a figura decisiva no processo que desmontou a sensibilidade literária do século XIX, para construir a literatura contemporânea no Ocidente.

 

“UMA LEVE LUZ” – Apesar de usar sempre imagens claras, os versos de Pound contêm alguns milhares de alusões e referências em dezenas de línguas mortas ou vivas. Estas citações que percorrem os poemas dificultam o entendimento de muitas passagens, mas não formam um muro intrnsponível: é certamente mais fácil ler Pound que a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Isto porque o mundo de Pound é o nosso, e todo o seu esforço vai no sentido de fazer a linguagem fluir, ainda que em seus versos ecoem vozes de poetas gregos, latinos, provençais, chineses e japoneses. Para Pound, a poesia mais nova, e portanto a mais eficaz, é aquela que se orienta pelos “pontos luminosos” da tradição poética, que ilumina o presente.

Não há nenhum passadismo nesse procedimento. O poema Terra Estéril, de T.S. Eliot, e o romance Ulysses, de James Joyce, que Pound ajudou a publicar, em 1922, dois marcos da literatura contemporânea, também foram edificados sobre os andaimes da tradição, recriada e renovada. O terceiro marco da  literatura moderna é uma obra do próprio Pound: Os Cantos, um monumento de mais de 100 poemas longos, compostos durante quatro décadas. Em Ezra Pound – Poesia estão primorosamente traduzidos catorze desses poemas, na íntegra, e fragmentos de outros cinco.

Em Os Cantos, Pound radicaliza o projeto de realizar uma súmula literária, fazendo um pastiche de vários autores e, à medida que envelhece, lhes dá um tom mais pessoal, fazendo um balanço de sua vida. O resultado é deslumbrante.

Entre os erros de Pound, o mais devastador, tanto para sua poesia como para sua vida, foi a sustentação que deu ao fascismo antes  e durante a II Guerra Mundial. De 1940 a 1945, Pound ocupou, numa média de duas vezes por semana, o microfone da Rádio Roma, para enaltecer Mussolini, atacar os judeus e, no início, tentar evitar a entrada dos Estados Unidos na guerra.

Depois do ataque japonês a Pearl Harbor, e do envolvimento dos EUA no conflito, Pound recusou-se a sair da Itália, e continuou com os programas de rádio, ganhando 17 dólares por transmissão. Em 1943, Pound é acusado de traição pelo Tribunal do distrito de Colúmbia. Em maio de 1945 ele se entrega às tropas americanas em Gênova, é internado num campo militar em Pisa e permanece ao relento durante três semanas, numa jaula de aço. Recambiado para os EUA, é analisado por quatro psiquiatras, três deles indicados pela Justiça americana. O diagnóstico dá o poeta como louco e, portanto, incapaz de ser julgado.

 

DANTE NO MANICÔMIO – É provável que, naquele momento, Pound estivesse mentalmente desequilibrado. Mas isso não o isenta da adesão ao fascismo, que foi consciente, do preconceito anti-semita e das boas relações que mantinha com o registro italiano – ele escreveu diversas vezes a Mussolini, e levou um livro de poemas de presente ao ditador.

Posteriormente, também é certo, Pound recobrou a lucidez, e, durante os treze anos que esteve internado no hospital psiquiátrico St. Elizabeth, traduziu Confúcio e continuou a escrever Os Cantos. Durante esse período, houve um acordo tácito entre os psiquiatras do hospital no sentido de continuarem a rotular o poeta de louco, para evitar que ele fosse condenado à morte. Em 1958, Pound é libertado, e regressa à Itália.

Ernest Hemingway, ajudado por Pound na juventude, foi um dos que mais se empenhou na libertação do poeta, e lembrou, em 1957, que se Dante fosse julgado pelos parâmetros da política seria condenado, pois, no exílio, colocou seus inimigos no “Inferno”, ao compor a Divina Comédia. E Hemingway saiu em defesa de Pound: “Se aplicássemos os mesmos critérios da Idade Média, Dante deveria ter passado toda a sua vida num manicômio por seus erros de julgamento e por seu orgulho”.

Mesmo para o governo americano, o “caso Pound” é um espinho atravessado na garganta: na mesma época em que Pound amargava o internamento, o nazista Klaus Barbie, um assassino comprovado, era contratado pela CIA, e trabalhava como  espião.

 

No Brasil, os únicos a se engajarem no movimento pela libertação de Pound foram os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, integrantes do “Grupo Noigandres” da poesia concreta. Os trocaram cartas com Pound e, em 1957, divulgaram uma delas, na qual o poeta admitia morar no Brasil, se fosse convidado por uma instituição oficial. “Isso poderia possivelmente auxiliar-me a ficar livre do xadrês”, diz Pound na sua carta, agora publicada em livro.

 

Os três poetas brasileiros fizeram um apelo público para que a intelectualidade se movimentasse no sentido de obter a libertação de Pound, pelo que ele significava para a poesia, e não deixaram de condenar sua política. Ninguém respondeu ao apelo, à exceção da escritora Patrícia Galvão, a Pagu, ex-mulher de Oswald de Andrade. Na entrevista que Pound concedeu a Haroldo de Campos em 1959, o poeta americano ainda se colocava uma tarefa: “A Europa, depois da guerra, é como os restos de um vulcão erupto: é preciso recolher os fragmentos”.

 

(Fonte: Veja, 4 de janeiro de 1984 – Edição 800 – LIVROS/ Por MÁRIO SÉRGIO CONTI – Pág: 66/67)

 

 

 

 

 

 

 

 

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