Sérgio Fleury, delegado que foi símbolo da linha-dura do regime militar – titular da Delegacia de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo

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UM SÍMBOLO DA DÉCADA

 

O homem que encarnou a violência dos anos 70

 

Sérgio Fernando Paranhos Fleury

Delegado Fleury, responsável pela morte de Carlos Marighella. (Foto: Estadão Conteúdo – 20.11.1973)

 

 

Sérgio Fernando Paranhos Fleury (Niterói, Rio de Janeiro, 19 de maio de 1933 – Ilhabela, São Paulo, 1º de maio de 1979), o mais célebre policial da história do país, delegado que foi símbolo da linha-dura do regime militar – titular da Delegacia de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo, cargo que ocupava desde setembro de 1977.

 

Durante quase trinta anos, ao longo dos quais viveu literalmente de armas na mão, ele enfrentou terroristas, ladrões, assassinos, sequestradores, comandou cercos a quadrilhas de marginais, estourou “aparelhos” subversivos – e, por dez anos a fio pelo menos, foi sempre alvo de ódios intensos.

 

O pai, João Alfredo Curado Fleury, era médico-legista da Secretaria da Segurança e morreu de uma doença contraída de um cadáver que necropsiou. Órfão aos 14 anos, já aos 19 era escrevente extranumerário lotado no DEOPS. Teriam ali nascido os arraigados sentimentos anticomunistas que alimentaria na fase adulta.

 

Em 1968, Fleury era apenas um desconhecido delegado em começo de carreira, formado pela Faculdade de Direito do Vale do Paraíba, a quem o delegado Paulo Pestana confiara a chefia de uma equipe especial de ronda formada por três guardas-civis: João Carlos Tralli, José Campos Correa Filho, o “Campeão”, e Adhemar Augusto de Oliveira, o “Fininho I” – todos mais tardes acusados de integrarem o “Esquadrão da Morte”.

 

A violência de Fleury e seu grupo começaria a tornar-se famosa naquele ano, com a caçada que moveram aos marginais “Boca de Traíra” e “Brechó”, autores de quase uma centena de assaltos e alguns latrocínios na zona leste de São Paulo.

 

Nos passos da dupla, Fleury e seu grupo passaram onze dias dormindo em favelas, pernoitando sob pontes ou no interior de viaturas policias. Cercados numa casa da periferia, os marginais resistiram – e o tiroteio durou cinco horas. “Brechó” morreu e “Boca de Traíra”, com a munição esgotada, foi preso.

 

CERCO POLICIAL – Ainda em 1968, o assassinato do investigador paulista Davi Romero Paré pelo ladrão Carlos Eduardo Zampogna, o “Saponga”, forneceu a um grupo de policiais – Fleury entre eles – um pretexto sob medida para o início de uma maciça, sistemática campanha de extermínio de marginais, nos moldes do “Esquadrão da Morte” àquela época já em plena atividade no Rio de Janeiro.

 

No começo dos anos 70, o procurador Hélio Bicudo moveu intenso cerco judicial a Fleury – que até sua morte seria incriminado em oito processos, acusado de participação em execuções sumárias -, sem contudo levá-lo à cadeia. Porque Fleury já se tornara um intocável, graças às proezas acumuladas a partir de agosto de 1969, quando foi recrutado pelo DEOPS.

 

O combate à subversão exigia policiais destemidos, duros e eficientes – e tais atributos jamais lhe faltaram. Nos anos seguintes muito se falaria daquele delegado, que sempre tentou combater com a prática de tênis e futebol e saunas semanais, sua acentuada tendência à obesidade.

 

Habituado a lidar com marginais, ele logo se deu conta de que obteria bons resultados se adaptasse ao interrogatório de presos políticos os métodos que assimilaria nos porões da polícia. Com fria determinação, passou a empregar a violência com quem quer que estivesse de posse de informações valiosas. Mas, com a mesma determinação e impressionante paciência, consumia enormes períodos de tempo na busca de pistas ou indícios capazes de levá-lo a um nome, endereço ou rosto.

 

Assim seriam as investigações que o levaram à sua vítima mais famosa – o ex-deputado comunista Carlos Marighella, chefe da organização terrorista Aliança Libertadora Nacional (ALN), morto em São Paulo em novembro de 1969. Pouco depois de ter assumido seu posto no DEOPS, Fleury percebeu que havia um número telefônico anotado num talão de cheques pertencente ao terrorista Paulo de Tarso Wenceslau – àquela época recolhido aos cárceres da temida Operação Bandeirantes (Oban). Fleury descobriu que aquele era o número do telefone do convento dos frades dominicanos na rua Caiuby, em São Paulo – e imediatamente começou a trabalhar.

 

“PODE ESCREVER” – Nos dias seguintes, por ordem de Fleury, qualquer pessoa que saísse do convento tinha os seus passos seguidos. Convencido de que havia informações a arrancar do grupo de religiosos, o delegado achou que chegara o momento de recorrer à tortura – e, à custa de pesadíssimos interrogatórios, descobriu que alguns dominicanos poderiam levá-lo a Carlos Marighella. Um encontro entre religiosos e o líder terrorista foi arranjado para a noite de 4 de novembro de 1969, na alameda Casa Branca, no Jardim América.

 

Policiais que participaram do cerco a Marighella sustentaram que, ao contrário da lenda, não houve troca de tiros naquela noite. Tão logo Marighella apareceu e entrou no Volkswagen em que se achavam os dominicanos, vários policiais desceram de seus carros e caminharam em sua direção.

 

Aos poucos metros de distância, Fleury saiu do carro onde fingia namorar a investigadora Stella Borges Morato, que fora instruída para não se mover. Inadvertidamente, Stella resolveu seguir o chefe da ação – mas, ao ser alcançado, Fleury teria imaginado que o vulto a seu lado era o de algum integrante da escolta de Marighella.

 

Então Fleury se teria virado e atirado em Stella, que morreu no local. Com a atenção despertada pelo tiro, Marighella tentou abrir a pasta em que trazia um revólver, mas não teve chance de disparar, varado por balas de grosso calibre. “Uma delas foi disparada por mim”, diria mais tarde Fleury. Segundo os policiais, foi somente para encobrir as reais razões da morte de Stella que se teria montado a versão do tiroteio.

 

Fleury não teria a satisfação íntima de liquidar pessoalmente outro célebre desafeto – o líder terrorista Carlos Lamarca. Durante três meses, no inverno de 1971, o delegado perseguiu o fugitivo nos sertões da Bahia. Na madrugada de 28 de agosto, â frente de vinte homens do DOI-CODI do Rio de Janeiro e da Oban de São Paulo, Freury tomou o lugarejo de Biriti, a 600 quilômetros de Salvador.

 

Seu alvo principal era a fazenda de José Barreto, pai de José Campos Barreto, o “Zequinha”, que acompanhava Lamarca na fuga. Cercada a fazenda no meio da madrugada, Fleury comandou um tiroteio durante o qual quase foi alcançado por uma bala disparada por um irmão de Zequinha, Olderico.

 

Alertados pelos tiros, Lamarca e Zequinha, acampados 2 quilômetros além, recomeçaram a retirada. Na fazenda, começava a sessão de torturas que se prolongaria até o final da tarde. Segundo Olderico, Fleury desferia-lhe sucessivos socos. Mais tarde, diante da assustada população de Buriti, foi a vez do sexagenário José Barreto sofrer nas mãos de seu captor. Fleury tentou inutilmente arrancar informações do velho Barreto. No dia 3 de setembro, um jatinho da FAB levou o chefe da expedição de volta a São Paulo. Ali, três semanas mais tarde, ele foi informado de que Lamarca e Zequinha haviam sido localizados e mortos nos sertões da Bahia.

 

Rapidamente, o delegado do DEOPS paulista se transformou no mais eloquente símbolo da violência repressiva, um personagem inseparável da história do Brasil nos anos 60 e 70. Não foi ele o grande cérebro da repressão, nem seu articulador político – mas raramente, em qualquer regime de força dos tempos contemporâneos, alguém personificou tão a fundo e de forma tão avassaladora, como ele, o aparelho repressor.

 

RARAS VIRTUDES – Nada, então, parecia ameaçá-lo. Em 1973, ao ter decretada sua prisão preventiva por envolvimento numa execução promovida pelo “Esquadrão da Morte”, promulgou-se uma lei especial – a “lei Fleury” – para que todos os réus sem condenação anterior respondessem ao julgamento em liberdade. Sempre que crescia o alarido oposicionista destinado a crucificar o delegado, sobrevinham medalhas e condecorações – em seu peito, além de outros cobiçados lauréis, a “Medalha do Pacificador”.

 

Enquanto Fleury se sentava no banco dos réus num processo qualquer do “Esquadrão da Morte”, seus superiores tratavam de deslocá-lo para a investigação de casos que emocionavam a opinião pública. Nesses momentos, ele exibia à larga suas virtudes de policial.

 

Assim foi, por exemplo, em 1977, quanto mais de um promotor insistia em desafiar a impunidade de Fleury. Primeiro, ele resgatou o menino Gustavo Yoshioka, de 5 anos, sequestrado por uma improvisada quadrilha que o levou para a fronteira com o Paraguai. Meses depois, Fleury identificou e prendeu os assassinos de Ludinho Coelho, de 19 anos, filho do milionário Lúdio Coelho, sequestrado em Campo Grande por dois tenentes da Polícia Militar de Mato Grosso.

 

Além de reunir argumentos e apoio contra seus inimigos, ao solucionar tais casos Fleury era quase sempre contemplado com gordas gratificações – uma das origens de sua fortuna pessoal.

 

A essas acusações, ele sempre preferiu responder com o silêncio. Geralmente alheio às intermitentes campanhas, nacionais e internacionais, que pretendiam transformá-lo em sinônimo de tortura no Brasil, só uma única vez, em 1977, Fleury se prontificou a polemizar com seus acusadores.

 

Nos últimos tempos, Fleury vinha manifestando certo desconcerto diante dos rumos políticos do país. Afinal, vários prisioneiros que passaram por suas mãos estavam de volta à plena militância política – um deles, o mesmo Aurélio Peres que o acusou no 1.º de maio, nas comemorações do Dia do Trabalho, era deputado federal, do MDB.

 

Aos 46 anos incompletos – ele nasceu a 19 de maio de 1933, em Niterói -, o homem que encarnou a violência dos anos 70 morreu de modo bem mais prosaico, no litoral de Ilhabela, silencioso balneário a 200 quilômetros de São Paulo, onde descansava.

 

A notícia explodiu em São Paulo por volta das 2 horas da madrugada – e, imediatamente, os amigos começaram a preparar uma grandiosa despedida. O comando da polícia havia decidido dispensar a autópsia e coube ao legista Harry Shibata assinar o atestado de óbito. Até o final da tarde, 10 000 pessoas desfilaram diante do cadáver.

 

Enquanto o corpo de Fleury baixava à sepultura, ouvia um irado trecho do discurso do deputado federal Aurélio Peres. “Estamos aqui também para festejar a morte do maior torturador do país”, bradou o parlamentar – e provocou uma salva de palmas. Como dezenas de outros brasileiros acusados de atividades subversivas, o deputado foi submetido, anos atrás, a duros interrogatórios pelo então delegado do DEOPS Sérgio Fleury – e era um dos muitos que o acusavam diretamente, invocando seus casos pessoais, da selvagem aplicação de torturas.

(Fonte: Veja, 9 de maio de 1979 – Edição 557 – BRASIL – Pág: 28/33)

 

 

 

 

 

 

 

 

Sérgio Paranhos Fleury – titular da Delegacia de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo – foi assassinado por ordem de um grupo de militares e de policiais rebelados contra o processo de abertura política iniciado pelo ex-presidente Ernesto Geisel. É o que afirma Cláudio Antônio Guerra, ex-delegado do DOPS (Departamento de Operações Políticas e Sociais) do Espírito Santo.

Em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, no livro “Memórias de uma guerra suja”, que acaba de ser editado pela Topbooks, Guerra conta ter participado da reunião em que foi decidida a morte de Fleury.

Ele próprio teria dado a ideia de fazer tudo parecer um acidente. Acabou sendo enviado para liquidar o colega. Mas, por problemas operacionais, a execução teria ficado para um grupo de militares do Cenimar, o Centro de Informações da Marinha.

No livro ao qual, o delegado confessa ter sido um dos principais encarregados pelo regime militar de matar adversários da ditadura entre os anos 70 e 80.

Guerra está sob proteção da Polícia federal. Tornou-se uma testemunha-chave às vésperas do início dos trabalhos da Comissão da Verdade, criada para apurar violações aos direitos humanos entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar (1964-1988).

Ele conta ter executado pessoalmente militantes de esquerda como Nestor Veras, do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), após uma sessão de tortura da qual afirma não ter participado:
“(Veras) tinha sido muito torturado e estava agonizando. Eu lhe dei o tiro de misericórdia, na verdade dois, um no peito e outro na cabeça. Estava preso na Delegacia de Furtos em Belo Horizonte. Após tirá-lo de lá, o levamos para uma mata e demos os tiros. Foi enterrado por nós.”

Além do assassinato de Veras, Guerra conta como matou, a mando de seus superiores, outros militantes contra o regime, como: Ronaldo Mouth Queiroz (estudante universitário e membro da Aliança Libertadora Nacional – ALN); Emanuel Bezerra Santos, Manoel Lisboa de Moura e Manoel Aleixo da Silva (os três, do Partido Comunista Revolucionário – PCR).

Queima de arquivo

“O delegado Fleury tinha de morrer. Foi uma decisão unânime de nossa comunidade, em São Paulo, numa votação feita em local público, o restaurante Baby Beef”, afirma Cláudio Guerra.
Além dele, segundo conta, estavam sentados à mesa e participaram da votação:

O ex-delegado dá os nomes dos comandantes da operação, “os mesmos de sempre”:

 

O coronel do Exército Ênio Pimentel da Silveira (conhecido como “Doutor Ney”); o coronel-aviador Juarez de Deus Gomes da Silva (Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça); o delegado da Polícia Civil de São Paulo Aparecido Laertes Calandra; o coronel de Exército Freddie Perdigão (Serviço Nacional de Informações); o comandante Antônio Vieira (Cenimar); e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (comandante do Departamento de Operações de Informações do 2º Exército – DOI-Codi), que abriu a reunião.

“Fleury tinha se tornado um homem rico desviando dinheiro dos empresários que pagavam para sustentar as ações clandestinas do regime militar. Não obedecia mais a ninguém, agindo por conta própria. E exorbitava. (…) Nessa época, o hábito de cheirar cocaína também já fazia parte de sua vida. Cansei de ver.”

Guerra conta que chegou a fazer campana para a execução, mas o colega andava sempre cercado de muita gente. “Dias depois os planos mudaram, porque Fleury comprou uma lancha. Informaram-me que a minha ideia do acidente seria mantida, mas agora envolvendo essa sua nova aquisição – um ‘acidente’ com o barco facilitaria muito o planejamento.”

A história oficial é, de fato, que o delegado paulista morreu acidentalmente em Ilhabela, ao tombar da lancha. Mas Guerra afirma que Fleury na verdade foi dopado e levou uma pedrada na cabeça antes de cair no mar.

(Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2012-05-02/delegado-fleury-foi-morto-pelos-militares – POLÍTICA – A DITADURA REVISADA – Tales Faria, iG Brasília – 02/05/2012)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A história do delegado Fleury, algoz da ditadura militar

Fleury foi do DOPS e se destacou por seu método de investigação que aterrorizava, sem distinção, todos os investigados por ele

 

 

Sérgio Fernando Paranhos Fleury

Métodos sinistros eram utilizados por Fleury durante ditadura militar.
(Foto: Rolando de Freitas/Estadão Conteúdo – 01.05.1979)

 

 

Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o ícone da repressão política, nome que provocava medo e pavor, tanto entre criminosos comuns como naqueles que decidiram se armar e lutar contra o regime militar. A sangue frio, ou a sangue quente, essa história foi escrita no início dos anos setenta, com engajamentos em organizações clandestinas, múltiplas, e a criação de uma estrutura repressiva ímpar, dentro da qual os fins justificavam todos os meios.

 

Quando me avisaram, telefonema na madrugada de 1º de maio de 1979, que Fleury estava morto, minha primeira reação foi: quem o matou? A resposta foi de frustrante: embriagado, ele caiu no mar ao pular de um barco para outro, na Ilha Bela, litoral de São Paulo, e quando um marinheiro mergulhou e o trouxe de volta à tona, ele já estava nos estertores da morte.

A história da guerra revolucionária está contada em vários livros, entre os quais se destaca uma série do jornalista de obras de Elio Gaspari. O meu Autópsia do Medo mereceu lugar nessa estante, sendo adotado em várias faculdades e tema de uma tese de doutorado. Preferi o estilo de me fixar rigorosamente na narrativa dos fatos, ao contrário de alguns que preferiram construir uma literatura engajada, catártica pela derrota no violento combate entre brasileiros. Muitas vidas foram perdidas na luta por um sonho: derrubar o sistema dos militares, mesmo no terreno dominado por eles, com grupos impetuosos, mas reduzidos. O fracasso era pragmaticamente previsível, mas sonhos alimentam ilusões.

 

Fleury personificava todas as iras contra o que se convencionou chamar “sistema”. Ele era do DOPS, Departamento de Ordem Política e Social, que vigiava, espionava, bisbilhotava e atacava os insatisfeitos, classificados como “subversivos”. O DOPS era vinculado umbilicalmente ao DOI-CODI, o Departamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, órgão do Exército.

 

Funcionava na rua Tutóia, fundos do 36º Distrito Policial, bairro do Paraíso, onde apesar do nome houve dias infernais. O DOPS, no Largo general Osório, recrutou na Polícia Civil, à qual pertencia, os policiais que mais se destacavam na busca de criminosos comuns, principalmente ladrões. Foram selecionados na antiga Delegacia de Roubos do Departamento Estadual de Investigações Criminais.

 

Foi onde Fleury se destacou. Seu estilo: usar os mesmos métodos empregados contra criminosos comuns para ir atrás dos acusados de crimes políticos, entre eles muitos tidos como intelectuais, sem estabelecer diferença alguma entre uns e outros. O resultado foi terrível para os caçados, como sinistros também foram os métodos utilizados. Fleury construiu a imagem de carrasco-mor, ao mesmo tempo venerado pelos (muitos) que defendiam o regime militar. Sua carreira na Polícia foi meteórica: em apenas oito anos, foi de delegado de quinta classe a delegado de classe especial, ao lado do delegado Romeu Tuma, que primeiro chefiou o Serviço Secreto e depois foi diretor do próprio DOPS.

Fleury cultivou a fama de não deixar nenhum caso praticado por criminosos comuns sem solução. Prendia primeiro, verificava depois, e a estrutura de então na Polícia, onde ele foi gestado, legitimava a tortura e a violência. Só no Deic havia uma média de 700 presos/dia para “averiguações”, isto é, encarcerados para se saber se teriam algo para revelar. O pau-de-arara era instrumento de “trabalho”.

Choques também. Cenas indescritíveis aconteciam no cárcere para se chegar ao limite da resistência física e confessar. Além dessa carceragem, o Deic tinha à sua disposição outros 700 presos “averiguacionais” no Presídio Tiradentes, na avenida do mesmo nome (hoje extinto) e mais 600 no Presídio do Hipódromo, também nome da rua onde ficava. Tudo isso junto significava dois mil presos ao todo, sem nenhuma culpa formalizada, à disposição dos algozes encarregados de “averiguá-los”. No terceiro andar do Deic, formavam-se filas de presos esperando a vez de serem torturados.

 

 

A MORTE DE MARIGHELLA

 

 

Os mesmos métodos foram adotados na repressão política. Foi assim que não escaparam de suas garras o ex-capitão Carlos Lamarca, o líder Carlos Marighella, o cabeça pensante Joaquim Câmara Ferreira e o sucessor de Lamarca, morto no sertão da Bahia, Onofre Pinto. Nomes de destaque entre tantos e tantos. Para chegar a Marighella, Fleury invadiu o convento dos dominicanos, na rua Caiubi, bairro das Perdizes, e levou vários padres simpatizantes à causa carbonária para o DOPS. Lá, encarregou um delegado, Raul Ferreira, de vestir-se de padre e interrogá-los, como num confessionário. Um deles contou sobre um encontro marcado na alameda Casa Branca. Teve que ir para o bairro dos jardins dirigindo um fusca, com pneus quase murchos, para não poder acelerar.

 

Marighella entrou no carro e foi fuzilado. Fleury estava em campana no local, abraçado com uma moça, como se fossem namorados. Ela, Estela Borges Morato, investigadora do DOPS, morreu com um tiro na cabeça. Um dentista que passava de carro pela alameda na hora dos tiros, também foi atingido e morto. O delegado Rubens Cardozo Tucunduva, do DOPS, recebeu um tiro nas nádegas. O ferimento provocou uma infecção fatal.

 

Essa história real é difícil de ser admitida por alguns, mas incontestável para quem esteve no local dos fatos naquela noite: vi o corpo de Marighella dentro do fusca, contorcido, e todo o aparato policial no local, inclusive um bando de jovens ligados ao CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, uma espécie de milícia política da época. Eles me prenderam e levaram, à presença de Fleury, que reagiu com fúria: “esse é repórter, seu cretino!”. O mauricinho me perguntou porque eu não havia dito. Respondi: “porque você não me perguntou nada”.

 

Para o romance que seria revelado somente no livro que eu iria escrever, fui conversar com a amante dele, uma advogada, que me recebeu assim: “eu sabia que um dia você iria me procurar”. E me contou que havia guardado num cofre de banco um envelope para ser entregue a mim, somente depois que ela morresse. Lá dentro, estavam apaixonadas cartas de amor de Fleury para Leonora Rodrigues de Oliveira. Incrível: a advogada teve vários irmãos, militantes de esquerda, presos por Fleury. Estranhei. Ela me desafiou: “você não sabe escrever sobre o amor”.

 

A morte súbita de Fleury foi frustrante para mim. O feriado de primeiro de maio de 1979 caiu numa terça-feira. Seria prolongado, de sábado a terça. Conversei com ele na sexta. A revista Playboy  me pediu para fazer uma longa entrevista com o delegado. Não estava disposto a isso, e pedi um preço alto pelo trabalho. A revista topou. Na sexta, sala dele, como diretor do DEIC, quinto andar do prédio do Palácio da Polícia, fiz o pedido para uma longa conversa, sem interrupções. Ele me perguntou quem iria pagar o uísque, surpreendentemente entusiasmado com  a idéia. Contou-me que havia recebido uma carta de um clube inglês, na qual era insultado e desafiado para um duelo mortal. Nunca mais veria essa carta.

 

Saí contente do prédio. Fleury estava feliz. Tinha acabado de comprar um barco e iria aproveitar o feriadão para navegar. Tudo isso veio à minha memória naquele telefonema da madrugada. Fleury morto… por que isso foi acontecer justamente agora, antes da entrevista? Não poderia ter sido um pouco mais adiante? Decidi, anos depois, ser o autor de uma difícil biografia. Descobri muita coisa. Mas muitas delas foram para o túmulo.
(Fonte: https://noticias.r7.com/prisma/arquivo-vivo – ARQUIVO VIVO / A história do delegado Fleury, algoz da ditadura militar /  Por Percival de Souza – 09/10/2019)
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