Se tornou a primeira reverenda trans da América Latina em uma celebração da ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana)

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1ª reverenda trans da América Latina

 

Ser transexual no Brasil é ter a vida permeada por ameaças de morte. A cada três dias, uma mulher ou um homem trans é assassinado no país, que é líder no ranking mundial de ataques contra LGBTs, segundo a ONG Transgender Europe.

 

Ser transexual, líder religiosa e militante, como é o caso da pastora Alexya Salvador, eleva — e muito — o risco de uma violência transfóbica. “Um dia, você vai ver, estará lendo as notícias na sua timeline e, de repente: ‘Primeira reverenda trans foi morta’. Eu sei que corro risco. O ‘sistema da morte’ me ronda 24 horas por dia”, afirma Alexya, 39, que se tornou a primeira reverenda trans da América Latina em uma celebração da ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), no sábado (26), em São Paulo.

Por “sistema da morte”, ela se refere às várias ameaças carregadas de ódio que recebe diariamente. “Não é que me dizem: ‘Não concordo com o que você faz’. Escrevem coisas como ‘vou te picar no machado’, ou ‘você tem que morrer de Aids’. São pessoas que se dizem cristãs. Mas onde está Deus nisso?”

 

 

Portas abertas para trans e travestis

 

A Igreja da Comunidade Metropolitana, da qual Alexya tornou-se reverenda, é considerada a primeira igreja LGBT do mundo. Tem unidades em mais de 100 países, afirma ser “protestante, ecumênica e inclusiva”.

 

Na porta da igreja em que prega, em São Paulo, Alexya conta ser procurada com frequência por LGBTs dizendo que vão se matar — ela mesma já tentou suicídio três vezes. “Também chegam muitas travestis que são prostitutas e acabaram de apanhar de cliente. Por isso ficamos com a porta aberta, para falar: ‘Deus está em você. Deus te ama’. São histórias de chorar. Chegam sem dentes, sem tomar banho, não conseguem ir num hospital. Ninguém quer essas pessoas por perto.”

 

A reverenda diz que a população LGBT é “demonizada e escrachada pelas igrejas”. “A bola da vez é a sexualidade e a identidade de gênero. Os religiosos dizem combater a ideologia de gênero, que vai comer criança cozida. Pois eu digo: a ideologia de gênero já existe, é o machismo. São sempre os homens que dão a palavra final.”

 

Transição foi dentro da igreja

 

Católica de criação, Alexya conta ter passado por várias situações de preconceito. A que mais a marcou foi aos 14 anos, quando o coordenador do grupo de jovens do qual participava a chamou para conversar.

 

“Você sabia que Deus abomina os gays? Você sabia que vai para o inferno?”, perguntou ele. Alexya, na época ainda sem expressar sua identidade de gênero, respondeu: “Mas eu não sou gay”.

 

“Lembro que, depois dessa conversa, estava indo embora para a minha casa e pensei em me jogar embaixo de um carro. Perguntava: ‘Deus, por que me fez assim? Por que não me fez como meus primos?’. Achei que eu fosse um erro.”

 

Por causa do desejo de seguir a vida sacerdotal, entrou para o seminário aos 21 anos. Ficou um ano e meio e desistiu.

 

Em 2009, já se reconhecendo como gay, conheceu o atual marido, Roberto Salvador, e já não frequentava as missas na Igreja Católica. “Quando fomos morar juntos, procurei na internet ‘casamento LGBT’.” Descobriu a ICM e começou a frequentar os cultos.

 

 

Teóloga queer

 

 

Em 2011, foi convidada para ser diaconisa. “Na época, ainda diácono”, conta. No fim do mesmo ano, passou pela transição de gênero. “Achei que Roberto fosse querer se separar, mas me falou que ficaria ao meu lado”, relembra. O casal está junto até hoje e tem três filhos: Gabriel, 14, adotado em 2015; Ana Maria, 13, adotada em 2017; e Dayse, 8, adotada em 2019. Ana Maria e Dayse são trans.

 

Depois da ordenação, Alexya formou-se em Teologia. Fez um curso da própria ICM, com duração de quatro anos, e apresentou seu trabalho de conclusão na área da teologia queer — o termo em inglês refere-se a áreas de estudos dedicadas a questões LGBTs. Em 2017, virou pastora.

 

“A teologia queer propõe a desconstrução de textos bíblicos, analisando quando foi escrito, por quem e para quem”, explica. “Por exemplo: fundamentalistas gostam de citar um trecho de Levítico que diz que homem que se deita com outro homem é uma abominação, para falar que ser gay é pecado. Mas, no mesmo capítulo, é dito que Deus abomina quem come frutos do mar. Queremos mostrar que os recortes são intencionais.”

 

A líder religiosa também questiona o julgamento que recai sobre LGBTs com argumentos bíblicos em relação ao espaço que as mulheres vêm ocupando nas religiões. “A palavra de Deus diz que mulher não pode nem falar na oração. Mas hoje há pastoras de renome, como Ana Paula Valadão [do Ministério Diante do Trono]e a bispa Sônia Hernandea [da Igreja Renascer em Cristo]. Aí dizem: ‘Ah, mas naquele tempo era diferente’. Sim, era. Mas isso só vale para as mulheres? E para LGBTs, não?”, questiona.

 

“As pessoas têm que entender que a Bíblia levou centenas de anos para ficar pronta e só foi escrita por macho cisgênero. Não teve mulher. Quando vou debater com uma pessoa fundamentalista, não querem nem falar sobre isso. Então meu conselho é: estude, faça uma faculdade séria, aprenda grego e latim.”

 

Em seu trabalho de conclusão do curso de Teologia, Alexya defendeu que Jesus foi o primeiro homem trans da história. Mas, antes que os leitores comecem a vociferar contra ela, explica: “O cristianismo acredita na Santíssima Trindade, então Jesus, Deus e o Espírito Santo sempre existiram. Jesus era do gênero divino, nasceu e virou do gênero humano. Por isso digo que é trans. Houve uma transgressão, é o que defendo na minha tese.”

 

 

Inclusivas, mas nem tanto

 

 

Alexya questiona as chamadas igrejas inclusivas, ou seja, que recebem LGBTs e inserem suas pautas nas discussões. “É triste ter que falar de inclusão porque toda e qualquer igreja deveria ser inclusiva. Quando alguém coloca normas e regras para que uma pessoa participe de uma congregação, independentemente da escola de orientação, essa pessoa está deturpando o cristianismo. Deus não faz distinção de pessoas.”

 

Ela também critica a maioria das denominações que se dizem abertas à diversidade, mas que acabam reproduzindo os mesmos discursos estereotipados de grande parte das igrejas, como ter uma determinada aparência ou um comportamento que seria o adequado.

 

“Não vou enfiar meu cristianismo goela abaixo de ninguém”

 

O fato de se tornar uma reverenda trans significa, em sua opinião, que o cristianismo está em evolução. “Minha ordenação sinaliza outros tempos. Mostra também às pessoas trans que elas podem ser cristãs. Tem gente, não-cristão, que diz que não entende como dá para ser as duas coisas, mas nós temos todo o direito de seguir a fé que quisermos”, afirma.

 

Apesar da militância, Alexya salienta: “Não quero enfiar o meu cristianismo goela abaixo de ninguém”. Só pede respeito. “O que deveria deixar um cidadão indignado é o desemprego, é uma mãe não ter dinheiro pra comprar remédio pro filho, é ver um ser humano dormindo na sarjeta. Não a minha existência”.

 

“Eu tenho duas filhas trans crescendo na minha casa. Qual vai ser o Brasil em que elas vão viver quando tiverem a minha idade? Se a média de vida de uma pessoa trans no país é de 35 anos, me pergunto se elas vão conseguir chegar aos 39, como eu.”

 

(Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/01/24 – DIVERSIDADE / Por Camila Brandalise / De Universa – 24/01/2020)

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