Richard Brautigan, autor de ‘Açúcar de Melancia’, livro do último hippie da América

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Richard Brautigan (Tacoma, Washington, 30 de janeiro de 1935 – Bolinas, Califórnia, 16 de setembro de 1984), autor de ‘Açúcar de Melancia’, obra distópica sobre a vida em comunidades, livro do último hippie da América
O nome do escritor Richard Brautigan (1935-1984) talvez diga pouco ou nada para a nova geração de leitores, a despeito do sucesso que chegou a alcançar em vida, ao lançar, em 1967, o romance Pescar Truta na América, best-seller com mais de 4 milhões de exemplares vendidos no mundo todo, publicado no Brasil (em 1991) pela editora Marco Zero.
Com o lançamento brasileiro de Açúcar de Melancia (In the Watermelon Sugar), publicado originalmente em 1968, Brautigan, um dos escritores cultuados pelo japonês Haruki Murakami (leia abaixo), ganhou uma nova legião de leitores, atraídos pela narrativa algo ingênua e surrealista do último representante da geração hippie da Costa Oeste dos EUA.
O americano Richard Brautigan (1935-1984): distopia na comuna - (Foto: Divulgação)

O americano Richard Brautigan (1935-1984): distopia na comuna – (Foto: Divulgação)

 

 

Os escritores beatniks ainda não estavam aposentados quando Brautigan surgiu no cenário da contracultura norte-americana, nos anos 1950, como um poeta performer. Grande nome do movimento beat, o escritor Lawrence Ferlinghetti, 97 anos, fundador da City Lights, foi um dos seus primeiros editores – e, depois, um dos muitos detratores. Disse dele que esperava o amadurecimento de Brautigan como escritor, mas isso, segundo Ferlinghetti, nunca aconteceu. Considerava sua voz literária pueril, definindo-o como um escritor dos hippies.

O fato é que a originalidade de Brautigan e sua excêntrica narrativa – cruzamento híbrido de poesia beat com escrita automática surrealista – incomodavam tanto o establishment como proscritos literários. Contudo, eles continuaram seus amigos, aturando seu abominável comportamento. Brautigan era dependente de álcool, por vezes muito incômodo. Depressivo, acabou por se matar com um tiro, aos 49 anos, em 1984.

Vivia sozinho numa casa grande e velha de Bolinas, um vilarejo de pescadores de 15 quilômetros quadrados na Califórnia com uma população de pouco mais de 1 mil pessoas, reclusas e hostis (a ponto de sumir com placas de sinalização que indicam o caminho para a praia). Na época do flower power, o lugar era frequentado por gente como os atores Peter Fonda (de Sem Destino, epitáfio da geração hippie) e Harry Dean Stanton (Paris, Texas). Lá também morou o poeta e romancista Aram Saroyan, filho de William Saroyan (1908-1981), que escreveu a biografia do pai.

Bolinas não é uma praia para quem sofre de depressão – e teve a infância infeliz de Brautigan. Abandonado pela mãe garçonete num quarto de hotel de Montana, aos seis anos, ao lado da irmã com apenas dois, era natural que Richard adulto buscasse nas promíscuas e rápidas relações com as mulheres uma compensação pela falta de afeto da mãe.

Muitos casamentos e doenças venéreas depois, ele ainda tentava se livrar do trauma de juventude, época em que foi submetido a uma agressiva terapia de eletrochoques e diagnosticado esquizofrênico, depois de quebrar propositalmente a janela de uma delegacia para ser preso e fugir do frio e da fome nas ruas.

Brautigan teve uma infância miserável. A família vivia da assistência social. A mãe, dizem, separava as fezes dos ratos dos flocos de aveia para preparar as panquecas dos filhos. Muitas dessas tristes experiências de criança estão retratadas em sua obra, principalmente nos poemas de Brautigan.

Em Açúcar de Melancia, a forma com que o órfão sem nome descreve a morte dos pais devorados por tigres (que acabam ensinando aritmética ao menino) revelam a mesma frieza com que define o sentimento amoroso em Love Poem (“é tão bom acordar sozinho pela manhã e não ter de dizer a alguém que o ama quando deixou de amá-lo”).

Esse sentimento é expresso mais uma vez num dos capítulos de Açúcar de Melancia. O narrador, que mora numa comuna chamada euMORTE, não suporta o assédio da ex-namorada Margaret, que acaba encontrando uma solução trágica para esse desprezo. A antítese dos habitantes da comuna de euMORTE, que vivem uma existência ordinária nesse Éden pós-apocalíptico, é uma gangue de rebeldes que mora em barracões miseráveis, cheios de goteiras, perto de Obras Esquecidas, território proibido que é também uma alegoria, onde montanhas de livros são usadas para alimentar o fogo.

Obras Esquecidas virou canção de uma banda new rave, a Klaxons (no álbum Myths of the Near Future) e serviu ainda de inspiração a outros escritores, inclusive Dan Koontz, que criou um personagem num de seus livros (One Door Away From Heaven) diretamente relacionado com a história lisérgica de Brautigan. A moça acredita que, se for capaz de decifrar a mensagem do livro, os segredos do universo serão revelados.

Enigmático, sem dúvida, ele é. Na comuna de euMORTE, as casas são feitas de açúcar de melancia e a paisagem é sempre instável, variando de acordo com a cor do sol de cada dia. Lá, de tédio ninguém morre.

Murakami. A vida em comunidades hippies já rendeu bons livros, inclusive um indicado ao Pulitzer, Total Loss Farm, que narra a experiência coletiva do escritor Ray Mungo, um dos seguidores de Richard Brautigan. Há vários deles nos EUA – e também fora da terra natal do escritor, que morou no Japão por algum tempo, onde casou com a japonesa Akiko Yoshimura, em 1977 (a união durou três anos).

Foto: Reuters
Richard Brautigan, o último hippie da América

Haruki Murakami: choque ao ler Brautigan pela primeira vez

O escritor japonês Haruki Murakami, que se fixou nos EUA em 1986, é assumidamente outro fiel seguidor de Brautigan. Diz que ficou “chocado” quando leu pela primeira vez seus livros e os de Kurt Vonnegut, contemporâneo do autor de Açúcar de Melancia. Compreensível. Murakami, que gosta de música pop e teve um clube de jazz nos anos 1970, é igualmente marcado pelo universo dos quadrinhos, do cinema e da ficção científica.

Para citar apenas um exemplo: seu livro 1Q84, dividido em três volumes com mais de mil páginas, é o tipo de literatura que tem muito a ver com Açúcar de Melancia. Também uma distopia, os personagens vivem em duas realidades distintas, como os de Açúcar de Melancia, em que também o protagonista é um aspirante a escritor, como o narrador sem nome do referido romance de Brautigan. Definitivamente, um nome para não ser esquecido.

Escritor, morreu em 1984, aos 49 anos.

(Fonte: http://cultura.estadao.com.br/noticias/artes – NOTICIAS – ARTES / CULTURA/ por Antonio Gonçalves Filho, O Estado de S. Paulo – 14 Agosto 2016)

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