“O máximo de felicidade de um depende do máximo de felicidade de todos.” José Oiticica (1882-1957), poeta, filólogo e sociólogo mineiro

0
Powered by Rock Convert

Anarquista da paz

 

José Oiticica (Oliveira, 22 de julho de 1882 – Rio de Janeiro, 30 de junho de 1957), poeta, filólogo e sociólogo mineiro. Em 1909, Oiticica chegava ao Rio de Janeiro com mulher, três filhos, 3 mil réis no bolso e uma radical teoria sobre o Estado na cabeça: a causa de todos os males sociais estava na existência do dinheiro e dos governos. Quando José Oiticica comunicou sua teoria ao primo Ildefonso Falcão, jornalista e professor, ele exclamou: Mas isso é anarquismo puro! Era. E durante quase cinquenta anos de pregação social José Oiticica iria mostrar que realmente descobrira sua vocação: Todos os sistemas políticos faliram. Resta o anarquismo. Estudai-o! – diria depois como slogan. Relendo oitenta dos seus 1 500 artigos republicados em livro, numa seleção feita por seu amigo Roberto das Neves, vê-se também como um homem puro e idealista pode fazer de um ideal, mesmo discutível, uma vida magnífica.

 

Ideias sim, bombas não – No início, José Oiticica ficou um pouco assustado. Na Europa, os anarquistas começavam a lançar as bombas que levariam ao desenlace da Revolução Bolchevista de 1917, e ele só acreditava no poder das ideias. Em 1912, porém, Oiticica entra em contato com grupos de imigrantes espanhóis, italianos e portugueses anarquistas do Rio de Janeiro, e começa a fase revolucionária da carreira que em 1918 o leva ao desterro de alguns meses em Alagoas, quando fracassa no Rio de Janeiro a tentativa grevista de reproduzir o movimento russo de 1917.

 

De volta do desterro, José Oiticica funda, em companhia de Astrogildo Pereira, os jornais anarquistas Spartacus e Voz do Povo. Em 1919 cria a Liga Anticlerical, onde trabalhavam, entre outros, o tribuno Maurício (pai de Carlos) Lacerda e a poetisa Cecília Meireles. Mas somente dez anos depois, em 1929, às vésperas do Estado Novo, José Oiticica inicia a parte mais importante da sua ação doutrinária. Criando o jornal “Ação Direta”, começava a escrever a série de 1 500 artigos reveladores, em toda a dimensão humana do anarquista, poeta, filólogo, sociólogo e vegetariano que, devendo ser ateu, era espiritualista e grão-mestre da Fraternidade Rosacruz; sendo contra todos os títulos de nobreza e todas as eleições, foi eleito em 1927 Príncipe dos Poetas Mineiros por seus sonetos de rígida estrutura formal; e, sendo pela subversão da ordem, não perdoava o Partido Comunista Brasileiro por sujeitar seus adeptos às táticas aprovadas em Moscou.

 

Em 1957, quando Astrogildo Pereira, um dos fundadores do PCB, publicou no comunista Imprensa Popular uma autocrítica, penitenciando-se por haver praticado o culto da personalidade em relação a Stálin, Oiticica acusa o ex-amigo de trocar uma ordem de Moscou por outra. Essa confissão (de Astrogildo) marca o homem. É um homem cabisbaixo. Cabisbaixo porque seus amos assim o dispuseram. Os verdadeiros homens, os desligados de qualquer submissão à cilha dos amos, erram, mas não baixam a fronte. Confessam humildemente, francamente, erros e corrigem-se, porém jamais se aviltam. O pior é que essa cabeça não baixa espontaneamente: baixou porque da Rússia, dos novos amos, veio a nojenta ordem às novas imposições, virou a casaca, alijou do altar o ídolo Stálin, renegou do santo e prontificou-se, de olho no chicote, a mudar o rumo” (O artigo de Astrogildo, de abril de 1957). José Oiticica não se conformava, no fundo, era com a mudança da personalidade do amigo que, dez anos antes, empregara todo o dinheiro ganho num bilhete de loteria na fundação do jornal Spartacus.

 

O bom professor – Firme em sua crença de que o espírito anárquico é essencialmente avesso a quaisquer fanatismos, José Oiticica combateu o comunismo até o fim. Em janeiro de 1957, ano de sua morte, Oiticica aproveitava as queixas de Otávio Brandão, outro amigo anarquista que se insurgia contra o PC, e escrevia: O totalitarismo gera invariavelmente o servilismo. Por isso é das mais risíveis beocices vir Brandão delatar-nos as tremendas injustiças dos chefões no execrando Partido Comunista. Bem feito! Por essas razões, José Oiticica foi contra a entrega dos sindicatos ao Ministério do Trabalho, durante a ditadura Vargas, contra o integralismo e até contra a Previdência Social, que acusava de organismo financista a serviço da burguesia civil e militar para construírem ricos apartamentos e casas confortáveis (artigo A Previdência Social, antro de ladrões, de agosto de 1956).

 

Nesse campo das ideias, a figura contraditória de Oiticica era de uma coerência total: em 1929, ao ser atacado a tiros por dois pistoleiros do PC no Sindicato dos Gráficos do Rio de Janeiro, alguns trabalhadores pensaram em apresentar queixa à polícia, mas o líder anarquista foi contra. Como podereis pretender, camaradas, que nós, anarquistas, denunciemos à polícia e aos tribunais, cuja legitimidade não reconhecemos, uns pobres-diabos inconscientes do triste papel que representaram, como capangas de sistemas sanguinários? E talvez ainda por isso os vizinhos da sua casa da Rua do Resende, no Rio de Janeiro, vissem em 1930 chegar todas as tardes um grupo de freiras para receber aulas de português do antigo fundador da Liga Anticlerical. O anarquista dos artigos arrasadores do jornal “Ação Direta” ainda era o mesmo, afinal, que um ano antes de morrer escreveria no artigo Princípios e fins do anarquismo: “O máximo de felicidade de um depende do máximo de felicidade de todos”.

(Fonte: Veja, 10 de junho de 1970 – Edição 92 – LIVROS/ Editora Germinal – Pág; 92/93)

Powered by Rock Convert
Share.