“Não tema ser excêntrico ao defender suas opiniões, pois todas as opiniões aceitas hoje em dia foram antigamente condenadas como excêntricas.” Bertrand Russell (1872-1970), cientista, matemático e filósofo britânico

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Aos 89 anos: preso em Londres por “incitar à desobediência” 20 000 pessoas

 

Pacifista, Lorde, cientista, matemático, Sir Bertrand Russell: o típico excêntrico inglês moderno Dom Quixote

 

O Quixote inglês

Bertrand Russell (Ravenscroft, País de Gales, 18 de maio de 1872 – Penrhyndeudraeth, País de Gales, 2 de fevereiro de 1970), filósofo britânico
A excentricidade sempre fez parte de seu sangue azul: o avô, Lorde John Russell, primeiro-ministro da Rainha Vitória, foi visitar Napoleão exilado em Elba para consolá-lo: “Sire, não desespere. A Inglaterra está cheia de imbecis, mas no fim tudo dará certo”. Seu pai, Visconde de Amberley, apaixonado pelos estudos de Malthus, quis limitar o nascimento por meio de uma taxa crescente a ser paga ao governo por cada filho. Mas o último Lorde Russell, Bertrand, terceiro Earl (título nobiliárquico inglês corresponde a conde), de Amberley, foi o que levou a excentricidade a níveis quixotescos inéditos mesmo em sua aristocrática família. Adolescente, ingressou na Universidade de Cambridge e, paralisado pela timidez que o impedia de perguntar onde era o banheiro, andou a pé 10 km até o W.C. da estação ferroviária da cidadezinha universitária. Quando uma fábrica de computadores publicou, por engano, num anúncio a data de sua morte (em 1967), ele processou-a por “veicular fatos ligeiramente incorretos”.
Por que fala tanto? – Quando, em 1950, um jornalista lhe perguntou como empregaria os milhões do Prêmio Nobel de Literatura que acabara de receber, ele respondeu sem hesitar: “Vou empregá-los sobretudo em meu próprio benefício”. Na realidade, Bertrand Arthur William Russel, falecido no dia 2 de fevereiro de 1970, aos 98 anos de idade, foi o último Dom Quixote da era vitoriana da Inglaterra. Grande matemático (“Principia Mathematicae”, 1910), cientista (“O ABC da Relatividade”, 1925), pacifista (“Rumos para a Paz”, 1936), filósofo (“História da Filosofia Ocidental”) e opositor da guerra nuclear, fundador do Instituto Bertrand Russel pela Paz. Bertrand Russel teve, como declarou em seu livro ateu “Por que Não Sou Cristão”, todos os “benefícios de uma educação cristã”. Aos dois anos de idade, quando seus pais recebiam para jantar o grande poeta Robert Browning, ele gelou o diálogo indagando claramente: “Por que esse home fala tanto?” Aos três, com a morte dos pais, Bertie (seu apelido familiar) foi educado pela avó escocesa e presbiteriana, a temível Lady Russell, que considerava o vinho, os livres-pensadores e o fumo pecados mortais. Com uma disciplina espartana, o menino franzino era atirado às águas geladas de um lago próximo para praticar natação mesmo no inverno, depois tocava três horas de piano (Bach e Mozart) antes de ir rezar na capela doméstica e ensaiar, com seu terno de veludo azul, as reverências de praxe que faria ao ser apresentado à Rainha Vitória no chá anual que sua majestade oferecia à alta nobreza inglesa.
O matrimônio é amoral – Seus estudos iniciais em Cambridge o levaram à geometria e à matemática. Inspirado nos ensinamentos do matemático italiano Giuseppe Peano, que encontrara num congresso em Paris, em 1900, elaborou com seu professor (Alfred North Whitehead) o volumoso (“Principia Mathematicae”), que leva 347 páginas para definir o número 1. Alternando sua versatilidade intelectual com suas aventuras amorosas, casou quatro vezes. Sua primeira mulher, uma quacre apaixonada por política, Alice Smith, o leva a Berlim para estudar a democracia socialista alemã. Revoltado com a “inferioridade” das mulheres inglesas impedidas de votar nas eleições, ele une-se às sufragistas em 1907 como candidato a deputado, mas é repelido nas urnas. Cada vez mais, Bertrand Russel chocava a Inglaterra tradicional: depois da publicação de sua obra “O Matrimônio É Amoral”, as recepções elegantes o boicotam. Com o início da Primeira Guerra Mundial, opõe-se ao serviço militar, pregando o pacifismo, e, para pagar a multa de 100 libras que lhe é imposta por “desobediência civil”, é forçado a vender sua biblioteca.
Pesadelo contínuo – Em 1920 acompanha uma delegação do Partido Trabalhista à União Soviética e volta decepcionado: “O período que passei na Rússia foi de um pesadelo contínuo. A crueldade, a pobreza, a suspeita, a perseguição política formavam o próprio ar que respirávamos”. De volta da Rússia, Russell e sua segunda esposa, Dora Black, decidem fundar uma escola para seus filhos John e Kate. Essa escola ideal segue as linhas mestras de seu ensaio “Sobre a Educação, Principalmente na Infância” e já se antecipa à experiência revolucionária de Summerhill em nossos dias: uma mistura de liberdade (“incluindo liberdade de instrução religiosa”) e um mínimo de disciplina (“Uma escola é como o mundo: só o governo consegue impedir a violência mais brutal”). Tomando banhos de chuveiro juntos, meninos e meninas estudavam o que queriam a nunca sofriam punições. Ao cabo de poucos anos, a experiência educacional e o segundo casamento fracassaram. Aos 64 anos de idade, Bertrand Russel casa-se com sua secretária de 52, considerada uma beleza clássica, Patricia Spencer, e tenta lecionar, pela segunda vez, nos Estados Unidos, convidado pela Universidade de Nova York para uma série de conferências.

Cátedra de indecências – Setores puritanos dos Estados Unidos agitaram-se, indiferentes à defesa de Russell que faziam o físico Einstein, o matemático Whitehead e o educador Dewey: suas obras, em que prega a liberdade sexual e até o adultério ocasional, são consideradas “afrodisíacas, irreverentes e mentirosas”, é-lhe imputada a intenção de “reger uma cátedra de indecências” e o convite é desfeito. Daí por diante, Bertrand Russell fará questão de incluir em seu curriculum vitae o esclarecimento: “considerado indigno de lecionar filosofia na Universidade de Nova York”. Com o início da Segunda Guerra Mundial, a princípio ele aprova os acordos de Munique, mas logo reconhece no nazismo e em Hitler inimigos “tão temíveis quanto Stálin e a barbárie”. A bomba atômica desenvolvida tanto pelos Estados Unidos como pela Rússia parece prenunciar a hecatombe final da humanidade: o resto de sua vida será consagrado à luta pelo desarmamento nuclear. Na praça central de Londres, Trafalgar Square, ele lidera cerca de 20 000 pessoas na Marcha pela Paz, vestindo três calças, uma por cima da outra, para sentar-se na calçada gelada até ser arrastado para a prisão pela polícia. Aos oitenta anos de idade, casando-se com a escritora americana Edith Fich, também apaixonada pacifista, Russell consegue a assinatura de alguns dos grandes cientistas do mundo contra a corrida de armamentos atômicos.
Lá fora, a escuridão – Com a eclosão da guerra do Vietnã, seus sonhos pacifistas esboroam-se: fundando o Tribunal Internacional dos Crimes de Guerra, em Estocolmo (Londres negou-lhe licença para organizá-lo em solo inglês), Russell, o teatrólogo marxista alemão Peter Weiss (autor de “Marat-Sade”) e o filósofo francês Jean-Paul Sartre julgam e condenam o Presidente Johnson e o Pentágono por “crimes contra a população civil vietnamita”. Arauto de grande parte da juventude pacifista, “fóssil senil da era vitoriana”, segundo o jornal “The Times”, Bertrand Russell previra em sua “Autobiografia”: “Lá fora está escuro e quando eu morrer haverá escuridão dentro de mim. Não há brilho, nem imensidão… só a futilidade momentânea da ação humana e depois nada. Mas eu continuo crendo em minhas crenças fundamentais, em cuja busca vivi. Vivi perseguindo uma visão dupla: pessoal e social. Pessoalmente defendi sempre tudo o que é nobre, belo, suave: momentos de meditação que nos dão a percepção da sabedoria. Socialmente: antever, imaginariamente, a sociedade que deve ser criada, na qual os indivíduos crescem livremente e na qual o ódio, a ganância e a inveja morrem porque não encontram alimento. Nisso eu creio e nem o mundo, com todos os seus horrores, abalou-me nessa crença”.

O mundo segundo Sir Russell

OS DEZ MANDAMENTOS DE RUSSELL:

(Sua definição da atitude de um liberal diante da vida.)

1) “Nunca tenha certeza de nada.

2) “Não julgue útil ocultar provas, pois elas surgirão certamente.

3) “Nunca tente desestimular o pensamento, porque sem dúvida você o conseguirá.

4) “Ao deparar com oposição, mesmo se partir de seu marido ou de seus filhos, esforce-se para vencê-la por meio de argumentos e não pela autoridade, porque uma vitória que depende da autoridade é irreal e ilusória.”

5) “Não respeite a autoridade alheia, porque há sempre autoridades contrárias a ela.”

6) “Não use a força para suprimir opiniões que considerar perniciosas; caso contrário, serão as opiniões que suprirão você.”

7) “Não tema ser excêntrico ao defender suas opiniões, pois todas as opiniões aceitas hoje em dia foram antigamente condenadas como excêntricas.”

8) “Encontre mais prazer no desacordo inteligente do que na concordância passiva, pois, se você der o valor devido à sua inteligência, verá que o primeiro implica uma concordância mais profunda do que a segunda.”

9) “Seja escrupulosamente honesto, mesmo se a verdade for inconveniente, pois ela será mais inconveniente ainda se você tentar ocultá-la.”

10) “Não sinta inveja da felicidade dos que vivem num paraíso de idiotas, porque só um idiota pode considerá-lo um paraíso feliz.

ESTADOS UNIDOS:

Para mim, como para Goethe, a América parecia um romântico país da liberdade e lá achei uma falta de preconceitos culturais que me limitavam na Inglaterra. Sobretudo, apreciei como os americanos se libertaram do bom gosto.”

AMOR LIVRE:

“Sempre íamos tomar banho de mar nus, mas este esporte logo revelou-se perigoso, porque mais cedo ou mais tarde aparecia um policial tentando averiguar se não extraíamos sal do mar ilegalmente, sem pagar a taxa de monopólio estatal do sal (na Itália).”

CRISE EMOCIONAL:

“Em apenas cinco minutos refleti sobre as coisas seguintes: a solidão da alma humana é insuportável: nada consegue vencê-la a não ser a mais absoluta intensidade do tipo de amor que os líderes religiosos pregaram: tudo que não brotar desta origem é nocivo, ou, no melhor dos casos, inútil; segue-se como conseqüência que a guerra é um erro: que a educação ministrada em internatos como os da Inglaterra é abominável; que o uso da força deve ser menosprezado; e que, no plano das relações humanas, devemos penetrar o cerne da solidão de cada indivíduo e dirigirmo-nos a ela.”
(Fonte: Zero Hora – ANO 48 – N.° 16. 648 – Já Foi Dito – 6 de abril de 2011)
(Fonte: Veja, 11 de fevereiro de 1970 – Edição n° 75 – Literatura – Pág; 64/65)

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