“Minas está onde sempre esteve, com seu passado, seu presente e seu futuro.” Otto Lara Resende (1922-1992), ex-editorialista de O Globo e do Jornal do Brasil, ex-diretor da revista Manchete e da TV Globo, e ultimamente cronista da Folha de S.Paulo

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Palavras de ouro

Otto: reescrevendo um romance inteiro, para “despiorá-lo”.

Otto Lara Resende, ex-editorialista de O Globo e do Jornal do Brasil, ex-diretor da revista Manchete e da TV Globo, e ultimamente cronista da Folha de S.Paulo.

 

Otto Resende

Otto Lara Resende, o mestre da arte de conversar – (Foto: Correio IMS/Divulgação)

 

Otto Lara Resende, o mestre da arte de conversar, deixa uma obra na qual vale o que está escrito.

Otto Lara Resende (São João del Rey, Minas Gerais, 1º de maio de 1922 – Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1992), o mestre da arte de conversar. Banqueiro, professor de ginásio (francês, português e história), professor universitário (comunicação), servidor público (procurador da Prefeitura do Rio de Janeiro). Foi, nos anos 50 e 60, diplomata à margem da carreira: adido cultural em Bruxelas, no governo liberal de Juscelino Kubitschek, e em Lisboa, nos governos dos autoritários generais Costa e Silva e Garrastazu Medici.

Imortal duas vezes, por ter ocupado em vida a cadeira número 39 da Academia e depois da morte pelos cinco livros que deixou, “o genial frasista de São João”, como o chamou o cronista Sérgio Porto, foi até o fim um homem alegre e mestre da quase perdida arte de conversar, persuadir, ironizar e esculpir palavras.

Do dia em que estreou em jornal, em 1940, com um artigo chamado “Panelinhas literárias” publicado em O Diário, de Belo Horizonte, até 21 de dezembro de 1992, quando escreveu na Folha de S. Paulo sua última colaboração, “Águia na cabeça”, Otto jamais se separou de suas várias máquinas de escrever. Foi professor de ginásio e diretor de banco em Minas Gerais, funcionário público e adido cultural em Bruxelas e Lisboa, além de ter percorrido todas as redações do Rio de Janeiro e ocupado uma diretoria adjunta na Rede Globo. Mas só a literatura, “pela qual deixei de viver muitas vidas”, como dizia, o motivava. “Ele é um dilacerado essencial: fica numa euforia total e num pânico absoluto”, observou seu conterrâneo, o escritor Hélio Pellegrino (1924-1988). Na qualidade de amigo e psicanalista, ele avaliava: “Otto quer e não quer a Academia, que na verdade significa a sagração de suas bodas com a literatura – a única atividade em que não é um diletante”.

GENOCÍDIO LITERÁRIO – No entanto, quando foi eleito imortal, em 1979, Otto dizia que a única vantagem do posto era usar a vaga na garagem da Academia, “pois estacionar no centro é um inferno”. A frase é Otto em estado puro, e nela estão contidos tanto o esplendor quanto as sombras de sua obra. Capaz, como diz a lenda, de perder um amigo mas não perder uma piada, causeur de primeiro quilate, o conversador Otto não pode impedir que estas qualidades ofuscassem as de seus livros. Muitos amigos, e o gênio singular de um deles, Nelson Rodrigues, autor da peça Bonitinha mas Ordinária, ou Otto Lara Resende, ajudaram a montar essa imagem pública. “A grande obra dele é a conversa”, disse Nelson, numa avaliação tão hilariante quanto injusta. E mais: Deviam botar um taquígrafo atrás, anotando tudo, e depois vender ou alugar numa loja de frases”. Seria uma loja muito bem sortida, mas Otto, entre uma reclamação e outra por ter virado piada, jamais levou essas histórias a sério.

Talvez as entendesse como uma herança, primeiro por ter vindo de um lugar tão cheio de casos, fatos e versões, e segundo porque tinha espírito de equipe. A gente do lugar, talvez porque muitas gerações atrás saquearam seu ouro e tesouros, era desconfiada com estranhos e, por motivos inexplicáveis, teria desenvolvido uma compulsão doida pelo ato de escrever. Além de vanguardas e retaguardas que brotavam no interior, só na Belo Horizonte das três primeiras décadas do século nasceram e morreram 160 jornais e 200 publicações.

Muitos anos depois, os contistas mineiros foram o pesadelo diário do cronista Telmo Martino, que os imaginava produzindo milhões de metros de papel cheios de lembranças com cheiro de mangas e a descrição de minhocas no quintal. O próprio Otto, ancorado na economia de sua pequena produção, ficou atordoado pela leitura de 13 000 originais mandados a um concurso e chegou a tramar um genocídio literário: botar toda a papelada num avião e despejá-la, impiedosamente, sobre Belo Horizonte.

A equipe era um quarteto de jovens: Otto, Pellegrino (morto em 1988) e o poeta Paulo Mendes Campos (em 1991). Fernando Sabino é o último sobrevivente desse grupo autonomeado “os quatro apocalipse”. Todos deixaram obra expressiva, eram também espirituosos e envolventes, mas nenhum ficou marcado, como Otto, só por ser autor de frases, e não de livros.

A OBRA FALADA – E daí? Daí que, se fosse apenas isso, já seria uma obra cheia de momentos esplêndidos. Num, em 1964, Otto aparece irado numa mesa do restaurante Antonio’s no Rio de Janeiro, esbravejando contra os militares e assumindo: “Não tenho medo não. Meu nome é Fernando Sabino”. Numa outra, em torno de um jantar em que o então governador Franco Montoro fazia dormir a plateia com sua dissertação sobre hortas comunitárias, gritou: “Acende o farol alto, governador!”. A conversa, na casa do advogado Miguel Lins, evoluiu para o que seria o primeiro esboço da campanha das Diretas Já. Enfim, aparece Otto diante da garçonete do restaurante Quadriofoglio, no Rio de Janeiro, com uma foto mostrando ele e Sabino. Disse a ela, apontando para o amigo: Olha bem para a cara dele. Não tem dúvida, será o próximo”.

Logo ele, o que ficou para contar a história. Tão certo de que sua única chance de entrar na Academia seria na vaga de Otto, Sabino dedicou ao amigo um epitáfio prévio:

Aqui jaz Otto Lara Resende
Mineiro ilustre, mancebo guapo
Deixou saudades, isso se estende
Passou cem anos batendo papo.

PINGO NOS IS – Mas na literatura, como no jogo do bicho, vale o que está escrito. Em “O Lado Humano” (1952), “Boca do Inferno” (1956), “O Retrato na Gaveta” (1962), “O Braço Direito” e “As Pompas do Mundo” (1975) misturam-se poções certas de pessimismo, maldade, mistério, passionalidade e tragédia, num estilo que não é o das conversas fiadas:

Coisas domadas, serviçais, exalando uma confidência que ele sabe captar. Não há neste mundo um só trem que mereça ser deixado fora. Se não é objeto de venda ou de troca, recolhe ao depósito do Pastinho. Barbante, papel de embrulho, jornal velho, caixinha de papelão, caixote de pinho, vidro de remédio, garrafa vazia, prego enferrujado ou botão caído, nada ele desdenha. Viver é possuir. Tudo que existe exige a fatalidade de um dono. Como é pouca a gente que sabe disso, os rios correm para o mar.

Para quem nasceu na Rua do Matola, 9, em São João del Rey, Minas Gerais, e foi enterrado no mausoléu dos imortais da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, a vida pode ter sido mesmo um privilégio, isso sem nenhuma ironia. “Privei dessa gente toda, tive do mundo muito mais do que pedi”, costumava dizer Otto Lara Resende, que ainda se achava em débito com o mundo. E continuava retocando, palavra por palavra, o seu romance “O Braço Direito”, de 1963, “para despiorá-lo”, quando uma embolia pulmonar matou-o na madrugada de segunda-feira, dia 28 de dezembro de 1992, aos 70 anos. Não é o que dizem de Otto, mas o que daqui para frente todos vão dizer dele.

Pérolas da “loja de frases”

Otto Lara Resende passou a vida repetindo que inventou apenas uma frase (“O mineiro só é solidário no câncer”), pois todas as outras ele “achou por aí”.

Algumas delas:

“Minas está onde sempre esteve, com seu passado, seu presente e seu futuro.”

“O homem é um animal gratuito.”

“Leio muito. Não sou inteiramente uma besta porque sempre tive insônia.”

“A grande contribuição de Minas Gerais para a cultura universal é a tocaia. A tocaia é uma homenagem à vítima. Morre sem aviso prévio, delicadamente, se possível desconhecendo o autor da cilada.”

“O analista é uma comadre bem paga.”

“Chega de intermediários: Lincoln Gordon para presidente (sobre o embaixador americano no Brasil em 1964).”

“De que nos serve a posteridade, se não seremos contemporâneos dela?”

“Paisagem é verba (diante da mansão de um milionário, construída num lugar cercado de pobreza).”

“Consegui ser avô de minha filha e pai de minha neta, eliminando a mediação antipática do genro (sobre Helena, filha temporã).”

“Não sou homem de ter uma opinião no bolso e outra na lapela.”

“Devo ter sido o único mineiro que deixou de ser banqueiro.”

“O sujeito humilde cuja sogra tem reumatismo deformante vê logo que eu sou o confidente ideal, me envolve, me mobiliza.”

“Política é emboscada. Esperar o cavalo passar arreado na ponta, como dizia o Getúlio, grande político.”

“Sou autor de muitos originais e nenhuma originalidade.”

“Sou feito à imagem e semelhança da mulher de trottoir: eu paro com um assobio!”

“O homem é dramático porque morre.”

“A morte é o clube mais aberto do mundo.”

“Para mim é absolutamente fundamental que o espetáculo não termine aqui embaixo, na Terra.”

(Fonte: Veja, 6 de janeiro, 1993 –Ano 25 – nº 1 – Edição 1269 – MEMÓRIA/ Por Geraldo Mayrink – Pág; 72/73)

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