Ludwig van Beethoven, foi um dos três gênios máximos da música – Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus Mozart são os seus colegas de Olimpo

0
Powered by Rock Convert

 

 

Um gênio e sua missão
Ludwig van Beethoven: abrindo novas comportas para a música
Ludwig van Beethoven (Bonn, Alemanha, 16 de dezembro de 1770 – Viena, Áustria, 26 de março de 1827), compositor alemão, velhote intratável, surdo, feio, avarento e solteirão, filho da humilde ex-camareira Maria Magdalena Kewerich (1746-1787) com um bêbado incurável, bisneto de um padeiro – mas uma glória nacional: Ludwig van Beethoven.
Posto ao nível de um dos três gênios máximos da música – Johann Sebastian Bach (1680-1750) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) são os seus colegas de Olimpo -, Beethoven conta ainda a seu favor com uma adesão afetiva maior que os outros dois. Multidões se comovem diante de suas obras mais conhecidas – a sonata “Ao Luar”, a sonata “Patética”, a “Quinta Sinfonia” ou a sinfonia “Pastoral” -, porque nelas se encontra um componente dramático ou emocional mais fácil de se identificar.
E não falta uma eloquência até excessiva a certos analistas: “A arte de Beethoven é o maior documento humano em música. Se desaparecesse do nosso horizonte espiritual, a humanidade teria deixado de ser humana. Estão indissoluvelmente ligados o destino da música beethoveniana e o destino da nossa civilização”, escreveu Otto Maria Carpeaux (1900-1978) em sua “Uma Nova História da Música.”
          Demônios pessoais – Comparado ao enterro de Mozart – que morreu na mais negra miséria, foi sepultado em vala comum (nunca mais localizada) e só teve como acompanhante, além dos coveiros, um cãozinho fiel -, o de Beethoven foi um sintoma das radicais mudanças ocorridas, entre os fins do século XVIII e o começo do XIX, na história da música, no conceito e função da obra musical, no status do compositor, e na maneira do resto do mundo enfocá-lo. Muitas dessas mudanças se devem, diretamente, a Beethoven.
Embora integrante, ao lado de Joseph Haydn (1732-1809) e de Mozart, da tríade central do chamado Classicismo, Beethoven seria, ao mesmo tempo, o ponto de partida para o estilo que triunfou logo após sua morte: o Romantismo. Esquematicamente, costuma-se ver no Classicismo uma arte de finesse e perfeição formal, correspondente ao gosto da aristocracia anterior à Revolução Francesa. Ao passo que o Romantismo começaria a libertar os demônios pessoais de cada criador, subrodinando o formalismo à intensidade expressiva e correspondendo ao gosto da burguesia, então em ascensão.
          Não há dúvida de que houve, na vida de Beethoven, suficientes demônios e tensões para que ele necessitasse externá-los. Mas é extremamente perigoso querer transformar sua música em uma espécie de confissão ou desabafo. Não se pode esquecer que Beethoven é um clássico, pertenceu à tríade, foi aluno de Haydn e continuou, em linha reta, o grande espírito sinfônico alemão que seu mestre inaugurou e o Romantismo levaria ao paroxismo com Anton Bruckner (1824-1896) e Gustav Mahler (1860-1911). Não deve-se esquecer, tampouco, que cada época tende a enxergar os fatos segundo suas necessidades do momento, e foi justamente o Romantismo que cunhou a imagem corrente de Beethoven como uma espécie de titã em permanente disputa com a adversidade.
O sumo pontífice dessa visão, o francês Romain Rolland (1866-1945), beethoveriano fervoroso, tomou o mestre como modelo para seu extensíssimo romance “Jean-Cristophe” (a vida de um típico gênio oitocentista) e lhe dedicou vários outros estudos. “Beethoven é uma força natural”, escreveu Rolland. “E é um espetáculo de grandeza homérica ver essa luta de uma força elementar contra todo o resto da criação.”
          Tavernas e amantes – Há, em toda a biografia de Beethoven lutas que começaram muito cedo. Nascido entre 15 e 17 de dezembro de 1770, teve de enfrentar, na tenra infância, o desejo do pai, músico e alcoólatra, de vê-lo transformado em menino-prodígio, segundo o rendoso modelo de Mozart. O projeto não deu certo mas lhe valeu um aprendizado rigoroso que o transformou, ainda jovem, num inigualável virtuose ao piano e lhe assegurou o triunfo em Viena.
          Houve, a seguir, a luta surda entre o sucesso junto à nobreza vienense, que o sustentava, e seus ideais políticos de liberdade e igualdade. Para não se fugir à verdade, é necessário reconhecer que entre 25 e 40 anos, aproximadamente, Beethoven foi um homem rico, com lacaios, cavalos, amigos, tavernas e amantes, e cercado por numerosos mecenas ilustrados: o conde Rasumovsky, os príncipes Lichnowsky, Lobkowitz e Kinsky, e o próprio irmão do imperador, arquiduque Rodolfo, seu amigo, aluno e patrono. Já antes disso, contudo, começara outra luta: contra a miséria física.
Aos 22  ou 23 anos, percebeu os primeiros sinais de sua mais trágica doença, a surdez. Tentou escondê-la de si e dos amigos até 1802, quando, numa carta aos irmãos (conhecida como “Testamento de Heiligenstadt”), deu vazão a seu desespero: de fato, que destino mais cruel poderia haver para um músico. E a surdez foi apenas um dos males que o devoraram. Sabe-se da existência, ainda, de colite, reumatismo, diversas infecções e abcessos, uma degeneração inflamatória das artérias e, após os 50 anos, uma hepatite crônica e uma cirrose, que causaram sua morte.
          Mulheres impossíveis – Houve, enfim, a luta contra a adversidade afetiva. Trata-se de um capítulo delicado, porque pode ter sido vigorosamente exacerbado pelo gosto dos primeiros biógrafos românticos. Ainda assim, parece que Beethoven se apaixonou pelo menos duas vezes por mulheres impossíveis. A primeira foi a condessa Giulietta Guicciardi, de 17 anos, coquete e infantil, sua aluna, cujos pais nem quiseram ouvir falar em casamento. (Beethoven lhe dedicou a “Sonata ‘Ao Luar'”.)
A segunda foi a condessa Therèse Brunsvik, prima de Giulietta, e na qual Beethoven encontrou alguma reciprocidade, ao ponto de durante muito tempo se supor ter sido ela a “Amada Imortal” de algumas cartas escritas em 1812. Não se sabe bem o que os separou. E houve, enfim, uma terceira personagem, a burguesa Teresa Malfatti, a quem propôs casamento, mas que simplesmente o recusou, por ser feio.
          Pois de fato também contra a feiúra ele teve de lutar. Os retratos idealizados do Romantismo, vinculados à ideia do titã, costumavam aureolá-lo com um tipo de virilidade agressiva, um rosto atormentado mas fascinante, em permanente desafio. A verdade era mais prosaica: pequena estatura, compleição atarracada, rosto grande, nariz chato, lábios finos e curvados num ligeiro toque de desdém, cicatrizes de varíola e olhos incisivos e brilhantes, de um azul-acizentado.
          Houve, enfim, na velhice, a luta contra as doenças e (aparentemente) uma certa pobreza. Até o Congresso de Viena, em 1814, Beethoven era uma personagem ilustre, convidada para todas as festas – embora, ao mesmo tempo, objeto de relatórios da polícia secreta por suas ideias sabidamente liberais. Enquanto isso, iam morrendo seus mecenas: Kinsky em 1812, Lichnowsky em 1814, Lobkowitz em 1816.
O público vienense começava a se deixar seduzir por um tipo de música mais fácil, como a de Rossini. Entre 1816 e 1821, Beethoven só compôs, praticamente, três grandes obras: as nonatas para piano opus 101 e 106, e a sonata para violoncelo opus 102 – mas que obras! E, segundo depoimento do violinista e compositor Louis Spohr, que o visitou em 1818, não saía então de casa por falta de sapatos. Afinal, nunca lhe faltaram editores e Beethoven deixou, ao morrer, uma herança de 10 000 florins.
          “Buonaparte” – Nem os sofrimentos físicos nem os morais, contudo, o impediram de fato de abrir, por seu comportamento e sua obra, comportas até então bem aferrolhadas. Era um individualista à maneira de Michelangelo – rebelde, ciente de seu gênio – e ao mesmo tempo um humanista, consciente de sua missão a cumprir. Falava em “velar pela humanidade futura”, através de sua música, e afirmou que “meu império está nas nuvens”. Jamais se curvou.
Quando seu primeiro mecenas, Lichnowsky, durante a ocupação de Viena pelas tropas napoleônicas, solicitou-lhe um concerto para alguns oficiais franceses, respondeu a seco e por escrito: “Príncipe: O que o senhor é deve-se ao acaso de seu nascimento. O que eu sou, o sou por mim mesmo. Príncipes haverá ainda milhares ao longo dos tempos. Beethoven, só um.” E não deu o concerto.
          Mais famoso é o episódio que envolveu a composição da terceira sinfonia (a “Eroica”) e Napoleão Bonaparte. Admirador da Revolução Francesa desde seus tempos de (mau) estudante na Universidade de Bonn, Beethoven logo se entusiasmou pela figura do jovem cônsul que, supunha ele, iria liquidar com o absolutismo na Europa e instituir na França o sufrágio universal.
Compôs então a sinfonia, inscrevendo na página de título, simplesmente, o sobrenome “Buonaparte”. Quando soube da autocoroação de Napoleão, porém, se enfureceu: “Não passava de um homem como os outros e agora se tornará um tirano”. Raspou o “Buonaparte” da partitura com tal violência que perfurou o papel. E acrescentou: “Sinfonia composta para festejar a memória de um grande homem.”
          Uma outra passagem, enfim, bem menos conhecida, contrapõe Beethoven ao poeta Goethe. Ao fim de um esforçado trabalho de aproximação, os dois grandes gênios se encontraram, em 1812, em Teplitz, onde se refugiara de Napoleão a nobreza vienense. Passeavam juntos quando viram aproximar-se a família imperial. Goethe afastou-se respeitosamente. Beethoven, irritado, enfiou o chapéu na cabeça e manteve-se imóvel – até que o arquiduque Rodolfo e a imperatriz o viessem saudar. Mais tarde, escreveria, com fina ironia, a seu editor Breitkopf: “Goethe ama a atmosfera das cortes mais do que conviria a um verdadeiro poeta.”
          Modernidade – Tal independência de espírito transferiu-se naturalmente à música – e é na ampliação dos horizontes do classicismo musical que consiste a contribuição específica de Beethoven à sua arte. Na verdade, o mestre nunca fugiu às chamadas “grandes formas” clássicas, através das quais soube exprimir seu próprio universo: a sonata, a música de câmara (trios, quartetos, quintetos), os concertos para instrumentos solistas e orquestra, a sinfonia. Apenas a ópera não chegou a conquistá-lo: sua única experiência no gênero, “Fidélio”, nunca se transformou em um autêntico sucesso.
          Aliás, o sucesso de Beethoven nos demais gêneros não revela, como poderia parecer, um músico fácil. Excetuados os seus grandes hits e as peças de resistência, o restante da obra agrada a um público restrito. A complexidade do pensamento musical de Beethoven é imensa. Nunca de expressou pela profusão borbulhante de temas melódicos, como Mozart ou Schubert.
Preferia desenvolver, às vezes ao longo de anos, algumas ideias musicais simples, transformando-as, depois, dentro da mesma obra, com infinita sutileza. Um musicólogo austríaco, Rudolph Reti, chegou a demonstrar que uma peça tão ampla e rica quanto a “Nona Sinfonia” pode, no fundo, ser reduzida a alguns arcabouços melódicos – uma espécie de poucos temas com muitas variações.
          Em sua chamada terceira fase (já completamente surdo, de 1818 em diante), Beethoven passou a explorar mundos sonoros até então insuspeitados. Começou a fraturar, internamente, os temas musicais, transformando-os em peqi=uenas células melódicas, rítimicas ou harmônicas. Seus últimos quartetos são de uma modernidade assustadora – e, para que obtivessem êxito, tiveram que criar, na expressão de Marcel Proust, “um público específico para os últimos quartetos”.
Tecnicamente analisado, o Beethoven da última fase se revela, muitas vezes, mais próximo do século XX que do Romantismo, liricamente incandescente. Basta comparar, seu único ciclo de canções de amor, “À Amada Distante” (composto no ano da morte de Therèse Brunsvik), com as canções de amor de um Robert Schumann (1810-1856). O primeiro é uma natureza construtiva, um arquiteto de formas definidas, um severo artesão, mesmo quando se fala da amada. O segundo é, pura e simplesmente, um poeta apaixonado.
De qualquer forma, Beethoven cumpriu sua missão. No dia 26 de março de 1977, em Bonn, o presidente da República Federal da Alemanha deslocou-se até um quartinho da casa n.º 20 da Bonngasse – uma velha construção com dois andares de mansardas e muitas flores nas janelas e jardins – e ali deixou um buquê. Coube, depois, ao prefeito da cidade visitar um pequeno cemitério do século XVIII, onde colocou uma coroa no túmulo de Maria Magdalena Kewerich, anonimamente falecida em 1787.
Em 26 de março de 1827, outro cemitério – o de Warring, em Viena – era invadido por uma pequena multidão. Nada mesno de 20 000 vienenses – cerca de 5% da população da orgulhosa capital do Império Austro-Húngaro – saíam à rua não para o triunfal cortejo da coroação de algum monarca mas para o enterro de um velhote intratável, aos 56 anos, filho da humilde Kewerich com um padeiro. De lá para cá, tal glória só aumentou – transformando as comemorações do sesquicentenário da morte de Beethoven (iniciadas em sua terra com a visita presidencial à casa onde nasceu) num acontecimento capaz de ecoar, literalmente, em todo o mundo.
E foi com a “Nona Sinfonia” que se encerrou, em setembro de 1977, as comemorações do sesquicentenário na Alemanha. Ela foi tocada na praça do Mercado de Bonn por um conjunto de 130 músicos. A cidade natal de Beethoven foi mergulhada em sua música e nos versos da “Ode à Alegria”, de Schiller, que é cantada no último movimento: “Sede unidos, milhões”. Um apelo à fraternidade universal que, 150 anos após a morte de Beethoven, se concretizou em sua honra, pelo menos através da linguagem dos sons.

(Fonte: Veja, 30 de março de 1977 – Edição 447 – MÚSICA/ Por Olívio Tavares de Araújo – Pág: 104/108)

 

Powered by Rock Convert
Share.