José Guilherme Merquior, escritor e diplomata. Era admirado, e temido, pela sua formidável erudição.

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O especialista em tudo

José Guilherme Merquior (Rio de Janeiro, 22 de abril de 1941 – Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1991), escritor e diplomata. Merquior ocupava o cargo de embaixador do Brasil junto a Unesco, em Paris. Nascido no Rio de Janeiro, formado em Direito, aos 20 anos passou em primeiro lugar para o Instituto Rio Branco, de formação de diplomatas.

Entre 1981 e 1983, foi assessor especial do então ministro da Casa Civil do governo Figueiredo, Leitão de Abreu, numa associação com o regime militar que a esquerda brasileira jamais lhe perdoou. Era capaz de escrever sobre tudo, mas jamais se debruçou sobre o fato de agitar uma bandeira de liberal ao mesmo tempo em que colaborava com um regime de força.

A cultura brasileira perdeu um de seus principais intelectuais mais barulhentos. Merquior viveu e escreveu sob a síndrome de Rui Barbosa: era uma cartola na Senegâmbia. Como o Águia de Haia, que segundo a lenda teria ensinado inglês aos próprios ingleses, Merquior era admirado, e temido, pela sua formidável erudição.

Bem equipado como poucos intelectuais no país, escreveu em inglês vários de seus vinte livros, tinha trânsito livre nas melhores universidades do mundo e escrevia com a mesma clareza e conhecimento de causa sobre literatura, filosofia, sociologia, política e artes plásticas. Com essa bagagem cultural, Merquior tinha uma noção precisa de seu papel no debate de ideias no Brasil e se permitia ironias com sua imagem.

“No Brasil, quem sabe três coisas é considerado gênio por quem sabe duas; um dia alguém vai demonstrar que minha famosa erudição não passa de uma imagem em negativo da famigerada ignorância das pessoas a quem ela incomoda”, afirmou.

Em seus livros e ensaios, ao longo dos anos Merquior flertou com o hegelianismo culturalista de Lukács, com o existencialismo de Heidegger, com o iluminismo de Rousseau e com a sociologia de Max Weber. Era uma salada, temperada por um liberalismo constante. Também foi sistemático o seu empenho em demolir o marxismo, o estruturalismo e a psicanálise. Havia nesse seu afã de analisar grandes pensadores uma inquietude visceral e uma recusa taxativa ao provincianismo. Sua vasta erudição, no entanto, sempre foi aplicada na discussão de obras alheias, que iluminava determinados meandros.

Lançar uma luz radicalmente nova sobre um determinado assunto ou autor era coisa que Merquior nunca fazia. Não se depreende de sua obra uma força de originalidade, ou o impulso a abrir caminhos inéditos. Ele estava mais preocupado em podar do que plantar, em discutir ideias do que criá-las, em negar teorias do que afirmá-las. Mesmo na área em que tinha mais talento, a da crítica literária, a vezes deixou de lado o seu tão decantado rigor.

Se escreveu ensaios excelentes sobre Machado e Drummond, também foi capaz de entoar loas a pífia obra literária do ex-presidente José Sarney, de quem disse ser autor de ”uma expressiva literatura regional”.
“Miolo Mole” – Merquior tinha uma grande qualidade: num país de ralos debates intelectuais, não levava desaforo para casa, e comprava brigas sempre que sentia sua inteligência ultrajada. Tornaram-se célebres suas polêmicas – com Marilena Chauí, a quem acusou de plagiar Claude Lefort, com o psicanalista Eduardo Mascarenhas (a quem recomendou que estudasse Freud) e com Caetano Veloso (que para ele tinha “miolo mole”). Hoje, o que sobra de suas polêmicas são palavras ao vento – sempre duras, as vezes espirituosas, mas que em nenhuma instância acrescentaram algo de relevante a vida cultural do país.

Sobre Caetano, por exemplo, disse não compartilhar “da visão pateta do Brasil de que os grandes astros da música popular são intelectuais” – uma observação inteligente, mas sem maiores consequências. Nesse sentido, o que resta da obra de Merquior é uma grande negativa, uma carpintaria de flechas certeiras destinadas a eliminar ideias sem que em seus livros e em suas controvérsias repousem outras melhores para substituí-las.

Anemia – Em agosto de 1990, sentiu-se cansado, procurou um médico em Paris. O diagnóstico foi rápido: anemia. Embarcou para Boston, nos Estados Unidos, onde foi detectado o câncer no intestino. Em novembro de 1990, compareceu a entrega do prêmio literário Cino Del Duca a Jorge Amado.

Ao final, apressou-se em deixar o local. No dia 7 de janeiro, Merquior submeteu-se a nova cirurgia em Westchester, perto de Nova York, e logo após não resistiu a duas paradas cardíacas. Morreu aos 49 anos, de câncer.

(Fonte: Veja, 16 de janeiro de 1991 -– Ano 24 -– N° 3 -– Edição 1 165 -– CULTURA -– Editora Abril -– Pág; 63)

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