Joachim Gauck, ativista de direitos humanos na antiga Alemanha Oriental a presidente da Alemanha

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Joachim Gauck, de pastor rebelde a presidente da Alemanha

O ativista de direitos humanos na antiga Alemanha Oriental restabeleceu a dignidade do cargo de presidente e se manteve fiel aos seus temas mais queridos: liberdade e reconciliação com as vítimas do nazismo.

Joachim Gauck, presidente da Alemanha

Joachim Gauck, presidente da Alemanha

 

 

Em meados de fevereiro de 2012, Joachim Gauck, então com 72 anos, estava num táxi a caminho de casa quando uma nova reviravolta acontece em sua vida. O celular toca, e a chanceler federal alemã, Angela Merkel, comunica-lhe que o partido dela gostaria de indicá-lo candidato ao cargo de presidente. Gauck agradece e acrescenta estar ciente de que a decisão não deve ter sido fácil para ela. Ele sabe que a chanceler teria dito: “Uma coisa é certa: Gauck não será [presidente]”.

Ela estava errada. Ele se torna presidente na segunda votação, depois de obter a grande maioria dos votos da Assembleia Nacional. Um ano e meio antes, Merkel havia impedido a presidência de Gauck: é verdade que ele, como a própria chanceler, vem da antiga Alemanha Oriental, mas ele seria por demais imprevisível e teimoso.

Essas características se refletem no período de Gauck no Palácio Bellevue, a sede presidencial em Berlim. Por exemplo quando ele defende uma reparação alemã aos crimes de guerra cometidos pelos nazistas na Grécia, enquanto o governo evita esse tema como o diabo foge da cruz. Ou quando ele chama de genocídio o massacre turco contra os armênios bem antes de o governo tomar uma posição sobre o assunto.

Até que ponto um presidente alemão, um cargo principalmente representativo, pode interferir em assuntos políticos cotidianos? Gauck se movimenta num terreno escorregadio quando pede mais engajamento militar da Alemanha ou critica a eleição de um primeiro-ministro de esquerda no estado alemão da Turíngia, na região da antiga Alemanha comunista.

Uma agência com o seu nome

Nascido em 1940 em Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, Gauck não é apenas direto nas palavras – “Eu era um estudante fanfarrão”, disse, a seu respeito – como também levou ao cargo uma autoconfiança despreocupada. Em toda a Alemanha, mas especialmente no oeste, sua biografia de pastor rebelde na antiga Alemanha Oriental lhe confere muito mais credibilidade do que uma carreira num partido político poderia lhe dar. Ele restabeleceu a dignidade do cargo após seus dois antecessores, Horst Köhler e Christian Wulff, renunciarem.

Logo ele se torna um concorrente da chanceler federal nas pesquisas de popularidade e, de forma surpreendente, é ainda mais popular no oeste do que no leste do país. No leste, as opiniões se dividem sobre os dez anos de trabalho dele como “encarregado especial para os documentos especiais” da antiga Stasi. Os críticos, incluindo alguns ex-companheiros do movimento pelos direitos civis, afirmam que ele foi menos gestor e mais juiz e procurador. A agência dirigida por ele logo se torna conhecida como “agência Gauck”, e entre os antigos comunistas do lado oriental ele é chamado de “o grande inquisidor”, o que ele considera um comentário maldoso.

Por dez anos, Gauck administrou os arquivos do serviço de inteligência da Alemanha Oriental

Por dez anos, Gauck administrou os arquivos do serviço de inteligência da Alemanha Oriental

 

 

Destino do pai marcou Gauck politicamente

A oposição de Gauck ao regime da República Democrática da Alemanha (RDA) decorre de uma experiência dolorosa da juventude. Quando ele tinha 11 anos, seu pai foi levado, por causa de um contato que tinha no oeste alemão, para um campo de trabalhos forçados na Sibéria e, somente quatro anos mais tarde, libertado.

Em suas memórias, Gauck escreveu que o destino do pai lhe marcou politicamente e o impediu de ter qualquer simpatia pelo regime comunista. Ele desiste de se tornar jornalista, como inicialmente queria, e vai estudar teologia, tornando-se pastor. Suas atividades na igreja evangélica são vistas com desconfiança pela Stasi. Os registros sobre Gauck afirmam que ele seria um “anticomunista incorrigível”, que age sob o manto da igreja.

No outono de 1989, ele se une ao recém-formado movimento pelos direitos civis Neues Forum (Novo Fórum) e é eleito deputado na primeira eleição livre para o Parlamento da Alemanha Oriental, em 1990. Em seguida, acaba sendo escolhido, meio por acaso, como ele mesmo diz, para o cargo de principal administrador dos arquivos da Stasi.

Gauck se torna uma das figuras centrais do processo de unificação das duas Alemanhas, e a palavra gaucken (em referência a seu sobrenome) se torna um sinônimo para a verificação da ficha dos candidatos para o serviço público. Ele encampa as demandas da maioria dos defensores dos direitos civis, luta pela abertura regulamentada por lei dos arquivos da Stasi e adverte contra colocar um ponto final no passado. Em 2000, depois de dois mandatos à frente da gestão dos arquivos da Stasi, fala de uma “profunda satisfação por criamos uma lei especial que tem contribuído para a deslegitimação da ditadura finda”.

 

Gauck (dir.) e François Hollande dão as mãos em Oradour-sur-Glane

Gauck (dir.) e François Hollande dão as mãos em Oradour-sur-Glane

 

 

“Professor da democracia”   

Nos 12 anos seguintes, ele se engaja no debate público contra o esquecimento dos males causados pelas ditaduras nazista e comunista e a favor da democracia, até receber no táxi a ligação da chanceler federal. Mesmo presidente, ele não abandona seu tema favorito: a liberdade. Seu entusiasmo pelo assunto deriva da experiência com o Muro de Berlim e a ditadura. “Eu conhecia o olhar de compaixão daqueles consideravam ingênua a minha duradoura alegria quanto à liberdade no oeste, […] que me olhavam como se eu tivesse há pouco imigrado de uma cultura primitiva”, escreveu.

Seu segundo grande tema é a reconciliação com os vizinhos: a primeira viagem internacional leva Gauck à Polônia. Imagens mostram ele de mãos dadas com o presidente francês, François Hollande, em Oradour, com o presidente grego, Karolos Papoulias, em Lingiades, ou ao lado de Petro Poroshenko em Baby Yar, na Ucrânia – locais de massacres nazistas.

Nenhum presidente alemão derramou lágrimas de emoção tão frequentemente e em público. Seu mandato também coincidiu com as celebrações pelo 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial. Numa foto, ele é visto no memorial Seelower Höhen, nas proximidades de Berlim, onde se travou uma das últimas batalhas sangrentas do conflito. Gauck anda de mãos dadas com veteranos de guerra idosos. Eles vêm do país que, muitos anos atrás, sequestrou o seu pai.

Representante de uma era

Por muito tempo, ele deixou o público em dúvida sobre se estaria disponível para um segundo mandato. Então, em junho de 2016, rejeitou a possibilidade, argumentando não ter mais forças. Tomar a decisão, porém, não foi fácil. A política migratória e a ascensão do partido populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) o fazem ponderar se não deveria continuar como uma âncora de estabilidade.

No final de seu mandato, o círculo de sua atuação política se fecha. Para ele, as semanas que antecederam a queda do Muro de Berlim permanecem como a principal experiência de sua vida política: “Liberdade é bom, mas a libertação é ainda mais emocionante.”

 

PRESIDENTE ALEMÃO SE DESPEDE – UMA RETROSPECTIVA

“Arquivos de Gauck”

Por dez anos, o presidente alemão Joachim Gauck administrou os arquivos do serviço de inteligência (Stasi) da República Democrática Alemã (RDA). Como ativista dos direitos civis, ele foi eleito em 1990 para o Parlamento da ex-Alemanha Oriental, que propôs seu nome para o cargo em decisão apoiada pelo governo alemão ocidental. Até hoje, o órgão leva o nome não oficial “Arquivos de Gauck”.

 

Candidato do povo

Candidato do povo

 

Candidato do povo

Depois de haver deixado “sua” instituição em 2000, Gauck atuou como autor e ativista político. Após o pedido-surpresa de demissão do ex-presidente Horst Köhler, em 2010, o Partido Social Democrata (SPD) e os verdes cogitaram seu nome para o cargo. A mídia o aclamava como candidato do povo. No entanto Christian Wulff, da União Democrata Cristã (CDU), foi eleito em terceira votação.

 

Presidente Gauck

 

Presidente Gauck

Presidente Gauck

 

 

Depois de quase dois anos, Wulff foi forçado a renunciar. Também desta vez partidos de oposição defendiam a candidatura de Gauck, agora com apoio de Berlim. Em pesquisa realizada antes da Assembleia Federal responsável pela escolha do presidente, 69% dos entrevistados apoiaram o nome de Gauck. O resultado em 18 de março foi ainda mais decidido: ele obteve 991 de 1.228 votos, em primeira votação.

 

“Primeira-companheira”

 

"Primeira-companheira"

“Primeira-companheira”

 

Segundo a Constituição alemã, o presidente do país não está sujeito aos Três Poderes. Mesmo assim, Gauck é o primeiro chefe de Estado sem partido. E também o primeiro a não ser acompanhado pela esposa em ocasiões cerimoniais, mas por sua companheira Daniela Schadt, com quem vive desde 2000. Da ex-esposa Gerhild Gauck, com quem teve quatro filhos, ele está separado há 25 anos.

 

Liberdade pensada e vivida

 

Liberdade pensada e vivida

Liberdade pensada e vivida

 

Tema central de Gauck é a liberdade, a que gosta de se referir como “potencialização” do indivíduo. Críticos o acusam de, assim, defender o egoísmo com uma retórica anticomunista ingênua. Outros veem em seu discurso um apelo à responsabilidade: liberdade não significaria automaticamente felicidade ou satisfação, mas uma responsabilidade própria existencial, para além do poder do Estado.

 

Representante com franqueza

 

 

 

Representante com franqueza

Representante com franqueza

 

Como representante oficial da Alemanha no exterior, Gauck viajou por muitos países e se encontrou com diversos dirigentes. Mas nem sempre permaneceu diplomático: no início de 2014, na Turquia, acusou o governo do então premiê Recep Tayyip Erdogan de censura, ingerência no sistema judicial e estilo autoritário de governança. Erdogan protestou, mas ele se manteve calmo: “Cumpri o meu dever.”

 

Orador habilidoso

 

Orador habilidoso -

Orador habilidoso –

 

Em março de 2016 Gauck falou a estudantes da Universidade Tongji, em Xangai, da desconfiança que surge entre o Estado e seus cidadãos quando um governo não é legitimado por eleições livres. Oficialmente, a liderança chinesa não se irritou: Gauck se referira à ex-Alemanha Oriental. Ainda assim os paralelos implícitos foram compreendidos, graças a uma tradução que circulou na internet chinesa.

 

Visão e perspicácia

 

Visão e perspicácia -

Visão e perspicácia –

 

Dois meses após sua visita à Turquia em 2014, quando também foi a um campo de refugiados na fronteira com a Síria, Gauck apontou o número crescente de migrantes, alertando sobre a necessidade de ação: processo de asilo mais rápido, cooperação com parceiros europeus, mais pragmatismo nos limites do politicamente viável. Isso aconteceu 14 meses antes de Angela Merkel proferir: “Nós vamos conseguir.”

 

Recusa a segundo mandato

 

Recusa a segundo mandato

Recusa a segundo mandato

 

Em 2016 Joachim Gauck decidiu não se candidatar novamente, após entregar seu cargo. Apoio não teria lhe faltado: ambos os partidos do governo haviam sinalizado sua preferência. De início não foi sugerido nenhum outro nome. Gauck justificou-se com o temor de não poder terminar o segundo mandato, quando estaria com 82 anos.

(Fonte: http://www.dw.com/pt-br – Deutsche Welle – PRESIDENTE ALEMÃO SE DESPEDE – UMA RETROSPECTIVA/ Autoria: Jan D. Walter (ca) – 06.06.2016 – NOTÍCIAS – ALEMANHA/ Autoria Bernd Grässler, Kay-Alexander Scholz (fc) – 18.01.2017)

(Fonte: https://noticias.terra.com.br – NOTÍCIAS – 17 JAN 2017)

Deutsche Welle

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