Hoje ou sem presumir do futuro o que sairá daqui, nada ou quase uma arte. Étienne Mallarmé

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Mallarmé: a palavra como refúgio

Stéphane Mallarmé (Paris, 18 de março de 1842 – Valvins, 9 de setembro de 1898), poeta com expressiva representação do simbolismo na poesia francesa. Ele foi o maior poeta-para-poetas da língua francesa: um professor de inglês baixinho e irritável, sempre de toga, ávido de amigos, trancado no pequeno espaço entre sua cabeça prodigiosa e a folha de papel em branco. Nos seus 56 anos de vida, perdeu a mãe aos 5, a única irmã aos 15, um dos seus dois filhos quando este estava com 10 e, enfim, a fé, ofuscando-se “na terrível luz do silêncio”.

Autor de uma abundante “Correspondência” em prosa, produziu também uma obra de poesia quantitativamente muito menor e progressivamente mais seca, desossada e sintética. Os numerosos amigos notaram uma “amarga solidão” nos seus últimos dez anos de vida. E ele, no entanto, flutuava acima dela num limbo que era uma couraça literária: “Bem longe se ser um sonhador ingênuo, triunfo sobre a morte através de palavras todo-poderosas”.

Ainda um estranho – Modelo de vida empenhado e alienado à poesia nas suas mais extremas consequências, Stéphane Mallarmé cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé desafiou não apenas os leitores do seu tempo mas também seus seguidores modernos. Com uma lucidez soberba e orgulhosa, tinha plena consciência de sua façanha: “Hoje ou sem presumir do futuro o que sairá daqui, nada ou quase uma arte”, escreveu ele no prefácio de “Un Coup de Dés”, sua obra mais intrincada, intrigante e incensada.

“Nada”, “Quase” e “Arte” resumem, sem dúvida, toda a produção deste poeta acessível em português enriquecida com a separata, em francês, do texto de “Un Coup de Dés”.

Um novo mundo – Em vida, porém, Mallarmé anotava na sua correspondência que os elogios de então lhe davam apenas “uma glória vaga”. Hipocondríaco, doentiamente apegado aos amigos, viveu sete anos – dos 20 aos 27 – em crises sucessivas de depressão: “Sinto me morto: minha impotência torna doloroso o mais leve trabalho mental”. Não foi outro o motivo que o ligou literária e pessoalmente a Charles Baudelaire (1821-1867), o poeta que primeiro pressentiu a expansão do capitalismo do século XIX, os movimentos proletários, a marginalização dos poetas dos processos de produção e o advento de novas condições para a criação artística. Baudelaire, que vivia a vida em suspenso, ruminando contra o “Relógio / deus sinistro, assustador e calvo!”, previa um destino sombrio para a literatura: “A circulação dos grandes jornais vai impor coisas tão áridas que será melhor não ver”.

Irmanados numa admiração comum (Baudelaire traduziu os poemas de Edgard Allan Poe para o francês e foi para ler Poe no original que Mallarmé aprendeu inglês) e numa fobia pelo absurdo, a morte e o nada, os dois grandes poetas procuravam criar (“transfigurar” era a palavra-chave de Baudelaire, “transmutar” a de Mallarmé). Bradava Mallarmé: “A atitude do poeta numa época como esta é por de lado todos os meios de viciados que possam oferecer a ele.”

Constelação de imagens – Não é difícil imaginar essa atitude: Mallarmé em sua verdadeira solidão noturna, transmutando os objetos familiares que o rodeiam em heróis do seu delírio (janela, lâmpada, mulher, filha, paredes, aurora) e compondo imaginários retratos, naturezas mortas, paisagens, constelações de estrelas, leques, gelo. Descreveu em versos admiráveis os túmulos dos amigos e do seu amado poeta americano em “A Tumba de Edgard Poe” (1876).

Uma dupla presença feminina brota em “A Tarde de Um Fauno” (1876). O ofício de poeta domina quase toda a sua obra, como em “Brinde” (1893), abrindo-se justamente com o “nada”.
O grande lance – Esses poemas deram ao público uma noção da dificuldade de ser poeta, mas Mallarmé tentava expurgar ainda mais sua magra e cortante poesia. Amante da música, queria incorporar ao poema certas técnicas de compositor: como exprimir num verso a multiplicidade de vozes e timbres de cada um dos instrumentos. Em “Um Lance de Dados”, publicado um ano antes de sua morte, a frase que dá título ao poema é impressa em letras grandes e suas quatro partes desenham uma espécie de movimento ondulatório, sem continuidade linear, no qual certos comentaristas críticos enxergaram algo parecido ao movimento do tempo.

A arte redentora – A circunferência do poema, de matemática elegância, coroa enfim a criação desde poeta amável e amigo, fatalisticamente atrelado às palavras talvez para escapar à loucura. Porque, ao lado da sua belíssima constelação de estrelas e metáforas, o duplo luto precoce (mãe e irmã) de Mallarmé estigmatizou para sempre sua vida e sua poesia, vazada numa obsessão de túmulos, “cortejo fúnebre” em “Galanterie Macabre”, um morimbundo em “Fenêtres”, decapitação em “Pauvre Enfant Pâle”, medo da morte em “Angoisse” suicídio em “Igitur”, viuvez, beijo fúnebre e “triste sono” em “Tryptique” ou no naufrágio de “Un Coup de Dés”.

O tema da morte serviu-lhe, assim, para que descobrisse a beleza: “A beleza existe e tem uma única expressão perfeita: a poesia”. E nesta descoberta vagarosa, pensada e depurada, permaneceu, intocado, o nada – mas dela, seguramente, nasceu também uma arte.

(Fonte: Veja, 28 de maio de 1975 – Edição n° 351 – LITERATURA/ Por Geraldo Mayrink – MALLARMÉ/ de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos – Pág; 104/105)

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