Ezra Pound, poeta americano e sociólogo da cultura

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Ezra Pound (Hailey, Idaho, 30 de outubro de 1885 –- Veneza, Itália, 1° de novembro de 1972), poeta americano e sociólogo da cultura

Seu epitáfio, por ele mesmo escolhido, poderia ser o de “quem – fora do espírito da sua época – tentou ressuscitar a arte morta da poesia e manter o significado que a palavra (sublime) tinha antigamente”. Nascido em outubro de 1885, num país que considerava “semi-selvagem”, os Estados Unidos, no Estado rural de Idaho, Ezra Pound Loomis morreu em Veneza no dia 1° de novembro de 1972, derrotado pelos “acontecimentos do dia-a-dia”.

O “dia-a-dia” era a mecanização da vida moderna, a destruição dos direitos do indivíduo, a perda da cultura do Renascimento, da Grécia antiga, o poder sufocante do Estado tirânico. A Marcha de Mussolini sobre Roma, sua pregação da restauração da cultura de Dante Alighieri e de um povo de “santos, navegadores e poetas”, acendeu a sua imaginação.

Além da retórica fascista, Mussolini prometia uma nova sociedade, que abateria o “capitalismo anacrônico”. Embalado por esse cântico, Pound durante a guerra colaborou em programas radiofônicos italianos a favor do Eixo. Era um fascismo confuso, misto de estética divorciada da realidade e de anti-semitismo que ele difundia pelos microfones. Encarcerado num manicômio em Washington, antes que os escritores soviéticos de hoje sofressem tratamento semelhante, Pound, sejam quais forem suas miopias políticas, foi no entanto um corte irreversível na compreensão mais profunda da poesia.

Fundição – Menino ainda, foi com os pais visitar uma fundição de ouro na Casa da Moeda do governo. A imagem que se fixou em sua memória para sempre foi a dos homens nus até a cintura jogando moedas de prata no fogo para evitar a desvalorização do dólar, enquanto milhares de pessoas morriam a mingua de fome e de pobreza a sua volta. A conexão originalíssima que achou entre regime político sadio e literatura partiu daí. Medir a prata com a precisão de peso, a exatidão do olho que avalia sua espessura e brilho pareceu-lhe um sinônimo de medir, com senso crítico, o impacto e a limpeza da linguagem. O poema melhor era o que fosse mais “eficiente”, isto é: o que deixasse filtrar mais livre de impurezas a ideia poética que a forma deveria transmitir cristalinamente entre o autor e o leitor.

Filho de uma família excêntrica, seu avo correspondia-se em versos com o presidente do banco da cidadezinha local, enquanto sua avó e seus irmãos trocavam cartas em métricas preestabelecidas: uma semana hexâmetros, na outra decassílabos. Aos quinze anos, foi aceito por uma universidade porque sabia latim quase tão bem quanto inglês. Sua carreira de jornalista regiamente pago começou e terminou com um telefonema mantido de Paris com a revista de alta moda e luxuosa “Vogue” em Nova York. Pediram-lhe um artigo sobre o poeta belga Verhaeren, que acabara de morrer. Explicou a elegante redatora-chefe da revista que Verhaeren era um melancólico maldito, o que despertou a suspeita da jornalista. “Afinal”, perguntou, “sobre que Verhaeren escrevia?” “Sobre camponeses”, respondeu Pound.

A ligação transatlântica não permitiu distinguir se era de peasants (camponeses) ou pheasants (faisões) que Verhaeren tratava. Quando, em vez dos lindos animais de carne tenra regados a vinho rosê no restaurante Tour d”Argent, ficou claro que se tratava de gente rude da lavoura, ela desligou, desencorajada: “Ah, então vamos desistir. Isso é assunto que nós preferimos não abordar. Obrigada, Mr. Pound”.

Deformações – Poeta interessado utopicamente em reformar o mundo financeiro, de onde achava que provinham todos os males sociais do homem, denunciou a usura em versos incandescentes como uma instituição antinatural e anti-Deus. Via no capitalismo a castração do homem, a massificação do gado humano e o sufocamento da cultura. Propunha-se a ser professor dos ignaros. Entre seus noventa livros, famosos mais tarde, alguns se chamavam arrogantemente “O ABC da Leitura”, “Como Aprender a Ler” e “Guia para a Curtura” (pois kulchur é a pronúncia americana de culture, uma deformação que, ele chava, atingira a própria conceituação de cultura naquela nação ainda “semibárbara”). Seu mapa da literatura – e principalmente da poesia – era tão radicalmente novo quanto uma viagem de circunavegação pela literatura mundial. Citava os “Anacletos” de Confúcio ao lado de poemas em provençal, do renascentista italiano Guido Cavalcanti justaposto a um poema épico anglo-saxônico em inglês arcaico.

Sua defesa desesperada do indivíduo, numa sociedade que a indústria tornava cada vez mais sem rosto, mesmo antes do advento dos computadores, levou-o a optar pelo fascismo de Mussolini, supondo nele preservar a tradição de grandeza legada por Dante na poesia e a norma ética de dar um sentido artístico ao homem comum, que captaria de sua leitura dos gregos antigos e de Confúcio.

O Exército americano, ao capturá-lo em Pisa, na Toscana, em 1945, encerrou-o nu feita de tiras de metal de pistas de aterragem de aviões, de piso de concreto, sem cama, só com cobertores no solo frio e uma lâmpada acesa dia e noite. Vítima de um colapso nervoso, Pound foi considerado “inepto mentalmente” para responder ao processo. Sua defesa veemente era a de que “não traí os Estados Unidos absolutamente: de acordo com a concepção jurídica americana, quando não há intenção malévola não há crime”.

Trancafiado catorze anos no Hospital Saint Elizabeth, de Washington, D.C., ao ser libertado em 1958, voltou para a Itália adorada, onde morava com a filha Mary e a mulher.

Comparações -– Iconoclasta de Wall Street, era também um Iconoclasta da poesia acadêmica e/ou livre. Um poema seu começa dizendo – “Basta, Walt Whitman, já te detestei durante muito tempo”.

Além de não acreditar no verso “livre”, era contra a poesia pomposa, descritiva, sonora. De um oceano de laudas de um poeta ainda desconhecido e como ele um americano que se auto-exilara na Europa. T. S. Eliot, extraiu uma das obras-primas da poesia, que exprime a angústia do homem robotizado moderno, sem deuses e sem propósitos na vida: “The Waste Land”. Combateu a “poesia auditiva” de Milton em prol de uma poesia que, como a chinesa, irmanasse a beleza da ideia com a beleza visual dos sinais ideográficos.

Para ele, a poesia devia ser imagem concentrada. Dessa concepção que pregou a poetas ingleses em Londres (como Hilda Doolittle, R. Aldington, F. S. Flint e T. S. Hulme) resultaria o movimento do Imagismo, que nos Estados Unidos influenciaria decisivamente a poesia evanescente de uma Amy Lowell (1874-1925) ou abstramente conceitual, como a de uma Marianne Moore (1887-1972). Sociólogo da cultura, vislumbrava em certos desenhos de Walt Disney, que pregam as virtudes da coragem e da ternura, a tradução moderna, por meios eletrônicos, de ensinamentos morais de Confúcio.

A câmara de cinema para ele era não a aniquilação da literatura mas a depuração da literatura “de tudo que ela possa ter de supérfluo”. Severo com as criações alheias, só submetia seus próprios poemas à crítica de um amigo igualmente rigoroso, Ford Maddox Ford. Quando lia para ele trechos de seus “Cantos”, Ford rolava no chão fingindo convulsões, batendo com a cabeça no tapete e gemendo quando um verso lhe parecia belo demais ou horrendo demais.

Julgamentos – Sua poesia – ao contrário da sua crítica literária – causa as mesmas reações gastro-histriônicas em seus detratores ou admiradores incondicionais. Para uns, como Eliot, ele era não apenas “il miglior fabbro” (o melhor artesão da técnica poética) como o grande divisor de de compreensão poética do século XX: “Para todos os que compreenderem a necessidade de alguma mutação abrupta na forma e na linguagem poéticas, Pound aparece como o único que soube qual o caminho certo que a poesia deveria seguir”.

A vida moderna – com a interferência crescente do Estado, com as guerras mundiais, com a propaganda política, com a publicidade comercial – era a dessacralização da cultura. O povo perdia sua inocência e não adquiria a verdadeira cultura, só a semicultura e a semi-ignorância trombeteadas pelo rádio, pelo governo, pelas edições de livros de bolso.

Antigamente, a poesia era a rte do pobre: um intelectual que ganhasse miseravelmente saía de casa com poemas gregos de Anacreonte no bolso e era mais rico que os milhões de americanos submersos por máquinas de lavar roupa e programas de televisão tão imbecilizantes que os tachava de “lavagem cerebral”, visando a transformar todos os indivíduoas na massa amorfa e uniforme de carneiros idênticos uns aos outros e portanto massificáveis em tudo. Defendendo-se dos ataques de fascista, Pound desafiou seus acusadores a mostrarem uma única gravação sua que discriminasse contra raças, credos ou cor de pele, em oposição gritante contra o racismo apregoado pelo nazismo da “raça superior e ariana”.

Reconheceu que esteve trinta anos errado, ao supor que o fascismo pudesse preservar os direitos e as liberdades fundamentais do indivíduo: “Eu estava certo era de defender os direitos do indivíduo. Se, quando o poder executivo ou qualquer outro ramo do governo se excede em seus poderes legítimos e ninguém protesta, todos perdem gradualmente todas as liberdades. Contra a propaganda do terror e a propaganda do luxo, quem tem pronta uma simples e bela resposta?”

Dividido – O crítico Allen Tate não absolve Pound de uma opção humana monstruosa através de um deslumbramento verbal ofuscante para muitos: “Ao votar para que os “Cantos” de Pound recebessem o Prêmio de Poesia Bollingen (em 1949), eu reconhecia por um lado que le tinha feito mais do que qualquer outro ser humano para regenerar a linguagem, senão a fantasia criativa, do verso em inglês. Mas por outro tinha que reconhecer o fato desagradável de que ele conseguira isso em passagens versificadas que refletiam opiniões capazes de cobrir toda a gama que vai do pueril ao detestável.

Não aceito a “defesa” da irresponsabilidade (política) de Pound, que não chegou a “contaminar” a sua poesia. As opiniões desagradáveis (anti-semitas, fascistas) estão bem no cerne da sua poesia. E temos que reconhecê-las como sendo o que realmente são: pontos de vista de uma pessoa cuja filosofia de vida é imatura e incoerente”. Poeta menor, crítico maior, em Pound coexistiram até há poucos anos a lucidez e a certeza de ter feito uma opção eticamente certa porque esteticamente superior.

Interrogado pelo crítico americano Donald Hall, especialista em suas obras, ele respondeu à pergunta: Pode um homem pertencer a um partido errado e usar a linguagem de forma eficiente? “Pode, aí é que está toda a complicação! Uma arma é boa indiferentemente se manejada por alguém bom ou mau.” Indo mais longe, associou o mau uso da linguagem ao au governo: “A má linguagem, o mau estilo, está irremediavelmente destinado a acarretar um mau governo, o que é puro Confúcio: se as ordens não forem claras, não podem ser cumpridas. Os meios de comunicação hoje em dia trabalham sobre o nosso subconsciente e não nos deixam apelar para a razão”.

Confissões – Poucos dias antes de morrer, Pound tornou-se consciente das perversões monstruosas que a arte (estética), se deformada, pode trazer como consequência ética (no plano social, político e traduzida para o sofrimento humano). Como o povo alemão, ele tinha, por um lado, o legado fascinante da música de Wagner, que glorifica o mito épico da Kultur de uma “raça superior”. Por outro, os milhões de cadáveres jogados numa fossa na Baviera por uma empilhadeira mecânica nos campos de concentração de Dachau.

A precisão de sua visão artística soube pesar o metal raro da poesia iluminada de um Yeats e um Eliot ou a cunhagem pura do “Ulysses” de Joyce, cujos primeiros capítulos ele publicou em sua célebre “Paris Review”, dirigida de seu exílio voluntário dos Estados Unidos. Mas, aos 87 anos de idade, ele parecia completar o círculo iniciado como menino precoce que, aos doze anos de idade, nos subúrbios de Filadélfia, lia em vez de contos de fadas a pessimista “Elegia Escrita num Cemitério” de Thomas Gray.

Suas últimas palavras recolhidas por uma agência de notícias são devastadoras e irrevocáveis. Não parecem ser as do jovem rebelde que aos 22 anos escrevia fogosamente “para defender a humanidade em um mundo devorado pela usura. Escrevo em defesa dessa herança cultural que, brotada das catedrais, inclui séculos de doutrina antiusura”. As catedrais, como a de Coventry na Inglaterra, foram arrasadas pelo bombardeio da Luftwaffe.

E o jovem idealista, o esteta que “prezara sempre mais as ideias do que o caráter das pessoas”, sucumbira à nova lucidez tão impiedosa quanto límpida das suas últimas declarações: “Talvez toda a minha vida tenha sido um erro. Sempre me equivoquei… e tenho prejudicado a todos que me tocaram… Agora sei que nada sei. Tornei-me um iletrado homem de letras. Não posso mais pensar com clareza. Estou apenas consciente da minha desconcertante incerteza”.

 

(Fonte: www.correiodopovo.com.br – Cronologia/ Por Dirceu Chirivino -– 30/10/2010 -– Pág; 25)
(Fonte: Veja, 8 de novembro de 1972 –- Edição 218 -– Literatura/ Por Leo Gilson Ribeiro – Pág; 111/113)

(Fonte: Veja, 4 de janeiro de 1984 – Edição 800 – LIVROS/ Por MÁRIO SÉRGIO CONTI – Pág: 66/67)

 

 

 

 

 

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