A eterna primeira-dama do automobilismo nacional

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A dona da pista: a trajetória de Lulla Gancia, eterna primeira-dama do automobilismo nacional

A italiana Lulla Gancia venceu as curvas da vida com elegância, alegria e destemor.

Lulla Gancia ao lado do Alfa Giulietta, com que disputou a primeira corrida em 1963 (Foto: Arquivo Pessoal e Estadão Conteúdo)

 

Quando o italiano Piero Gancia, que se tornaria o primeiro campeão de automobilismo no Brasil, correu em Interlagos pela primeira vez, aos 39 anos,a bordo de seu Alfa Romeo em janeiro de 1962, ouviu umas poucas e boas de sua mulher, Lulla, que estava na Europa. Ele bem que tentou convencê-la de que “não havia nada de mais” na corrida, mas os tempos eram outros e, de vez em quando, um piloto diletante morria nos circuitos. Lulla decidiu conferir in loco e ficou apavorada. Mas no ano seguinte, vejam só, foi sua vez de colocar o carro na pista.

Num sábado de calor escaldante de dezembro de 1963, a turma de pilotos amadores convocou seis mulheres, entre esposas e irmãs, para correrem em Interlagos. Lulla chegou em terceiro lugar, num Alfa Giulietta, atrás das irmãs Marise Clemente e Leonie Caíres. O grupo entrou para a história como uma patota de pioneiras do automobilismo nacional – Lulla chegaria ainda a competir nos Mil Quilômetros de Brasília em 1966 e na Rodovia do Café, no Paraná, onde sofreu uma capotagem daquelas.

 

Lulla e seu marido, Piero Gancia, no circuito de Interlagos, em março de 1967 (Foto: Arquivo Pessoal e Estadão Conteúdo)

 

Neta do conde Salvadori de Weissenhof, da mais alta nobreza do Tirolaustríaco, Lulla, apelido de Amalia (mas nem tentem chamá- la pelo nome de batismo), nasceu em Turim – o bisavô construiu os famosos arcos da Via Roma, e o pai, engenheiro, chegou a ser prefeito da cidade. Ela e Piero Gancia se conheceram ainda crianças, quando as famílias passavam as férias de verão na costa da Ligúria. Desencontraram-se, ela ficou noiva de outro rapaz,que morreu em combate, e o destino arranjou o reencontro – o casamento foi um dos grandes eventos da capital piemontesa naquele ano de 1947. O neocasal foi morar no castelo dos Gancia em Canelli, na região de Asti. A família de Piero produzia, desde meados do século 19, os famosos vinhos e vermutes Gancia, mas seus pais haviam se mudado para a Argentina com os outros filhos para abrir uma frente de negócios – muito bem-sucedida, por sinal – na América Latina.

No castelo, Lulla e Piero tiveram o primeiro filho, Carlo, e, pouco antes de ele completar 1 ano, partiram para Montevidéu. A Guerra da Coreia estava pipocando, e o temor de uma terceira guerra mundial os levou a deixar a Itália.

No Uruguai, nasceu a primeira filha, Eleonora, a Kika (hoje Rivetti), mas o país era pequeno demais para os incansáveis Gancia. E por que não São Paulo, no pulsante Brasil? Mudaram-se para cá em 1953 e abriram a Gancia, onde o sobrenome da família acabou se tornando sinônimo do bom vermute italiano. Foi no País que nasceu a caçula da família, a hoje jornalista Barbara Gancia.

 

A italiana com sua coleção de vinis na casa na antiga Avenida Ibirapuera, em São Paulo, em 1955 (Foto: Arquivo Pessoal e Estadão Conteúdo)

 

De cara, os Gancia conquistaram a sociedade local, e a casa da antiga Avenida Ibirapuera, atual República do Líbano, se tornou destino incontornável de diversão, boa conversa e jantares memoráveis, sobretudo quando Lulla preparava seus famosos risotti. Quando Gianni Agnelli visitou o Brasil em 1955, foi na casa dos Gancia que ele se hospedou – e onde chorou as pitangas ao levar um fora histórico da socialite Tereza Souza Campos, por quem estava apaixonado. Com sua elegância ítalo-austríaca bem particular, Lulla virou cliente prime da antiga Casa Vogue, com seus habillés Dior para a noite e looks Pucci diurnos. Ela era – e é – daquelas mulheres de estilo calmo, sem afetação, avessa a enfeites, como, aliás, são todas as piamontesas. “Mamãe nunca fez o gênero árvore de Natal. Era sempre uma roupa de corte impecável, um brinco, um colar geralmente comprado do Pierre Loeb e basta”, lembra Kika. “A turma de amigas dela seguia o mesmo estilo – Cristina Suplicy, Andrea Moroni, Hélène Matarazzo, Adriana Crespi –, mulheres elegantes, de grande personalidade, mas despojadas. Não se fazem mais assim.”

A primeira corrida de Piero nasceu no dia em que ele levou seu Alfa Romeo para consertar. O mecânico, que trabalhara com o campeão argentino Juan Manuel Fangio na Maserati, perguntou por que ele não colocava o carro na pista, e o resto é história. Piero ganhou sua primeira corrida nas ruas da Barra da Tijuca, no Rio, em 1965; formou uma equipe campeoníssima, a Jolly-Gancia; e se consagrou o primeiro campeão brasileiro de automobilismo em 1966, em Interlagos. Com o título, tornou- -se o porta-voz dos pilotos que reclamavam, com razão, do estado deplorável e esburacado do circuito paulistano. Numa reunião com o prefeito Faria Lima,no fim dos anos 60, ficou decidida a reforma.Mas quem tocaria a obra? De pronto, e para espanto geral, Piero sugeriu o nome de Lulla. “Não tem pessoa melhor para levar a reforma adiante”, avisou aos presentes.

Lulla tirou dinheiro do próprio bolso e viajou até Monza para aprender como se faz uma pista de “Primeiro Mundo”. Escalou os engenheiros, adequou o asfalto, reformou os boxes, construiu o gradil de proteção. “Foi essa reforma que abriu espaço para que o Brasil abrigasse, em 1972, sua primeira corrida de Fórmula 1, entrando no ano seguinte para o circuito mundial”, lembra Carlo. Nesse meio tempo, Piero fundiu a Gancia com a Martini e começou a importar Alfa Romeos, Ferraris e Lamborghinis para o País.

A outra grande paixão dos Gancia, além dos carros e da Juventus, surgiu no fim dos anos 60: Gstaad, a estação de esqui suíça que virara a queridinha do nascente jet set internacional. Em 1967, começaram a alugar um chalé; em 70 compraram um terreno; e em 73 passaram o primeiro Natal no famosíssimo chalé que construíram, o Samambaia. O casal e os filhos viraram habitués do Olden, do Eagle Club,das noites memoráveis do Palace. Piero descia as pistas pretas e procurava a neve virgem de helicóptero; a mulher, no máximo, arriscava um ski de fond. Lulla comemorava aniversário em janeiro com outro aquariano, Giancarlo Giammetti, companheiro e sócio do estilista Valentino; ficou best friend do príncipe Sadruddin Aga Khan e de sua segunda mulher, Catherine; e saía com os brasileiros que faziam ferver a cidade – Elisinha Moreira Salles, Nelson Seabra, Carlos Jereissati, Zé Hugo e Marialice Celidônio, a família Shorto. Elizabeth Taylor ainda era casada com Richard Burton quando a amizade com os Gancia começou. “Os paparazzi ficavam de prontidão para fotografá-la, era uma loucura”,conta Carlo.“Certa vez, Elizabeth me pediu que conversasse com eles para que não a clicassem naquela noite, porque queria sair para jantar sem se arrumar, mas prometeu que no dia seguinte apareceria glamorosa, cheia de joias e faria a foto da vida deles.Ambas as partes cumpriram o combinado. Naquela época, ainda era possível essa convivência pacífica.” O Samambaia é hoje propriedade de Carlo, que o comprou dos pais nos anos 2000.

Os jantares mais animados da saisondo GP Brasil aconteciam na casa dos Gancia, que também faziam open house nas noites de domingo. Mas esqueçam aquelas mesas ruidosas italianas; os costumes eram do Mezzogiorno para cima.“Mamãe não é aquele estereótipo demama italiana”, avisa Carlo. “Sempre foi uma mulher alegre, larger than life,mas sóbria,pragmática. Papai era mais romântico.”

Os dois tinham o pensamento veloz herdado pela caçula, Barbara, que mostrava desde pequena o atrevimento que hoje é sua marca registrada no jornalismo. Aluna do St. Paul’s, quando a rainha Elizabeth II e o príncipe Philip visitaram o colégio inglês, ela rompeu o protocolo e disparou duas perguntas ao príncipe: “Vossa Alteza gosta de Beatles e Rolling Stones?”.“Não conheço muito”, respondeu ele. “Vossa Alteza está contente de ser consorte ou gostaria de ser rei?”, continuou a entrevista não autorizada. “Estou satisfeito”, disse o príncipe, meio sem graça. E Barbara ainda gritou “Have a nice trip, Your Majesty” quando Elizabeth deixou a escola. “À noite,o governador Abreu Sodré deu uma recepção para a rainha e contou à mamãe o que Barbara tinha feito”, relata Kika. E a quem Barbara puxou essa verve? “Não tenho ideia”, suspira Carlo.

Quando Piero morreu, em 2010, depois de um longo processo de Alzheimer, os amigos pensaram que Lulla perderia o chão. “Mamãe sofreu, claro, afinal foram mais de 50 anos de companheirismo de verdade”, diz Kika. Ainda que fragilizada por conta dos 91 anos, Lulla não perde um Saia Justa, programa do qual Barbara é co-apresentadora. “Ela não se abate fácil diante das coisas ruins. Tem ainda a força da estrangeira que conquistou um país desconhecido, da mulher que colocou o pé no acelerador de um carro de corrida. Mamãe tem coragem de viver.”

(Fonte: http://vogue.globo.com/lifestyle/noticia/2015/09 – A dona da pista: a trajetória de Lulla Gancia, eterna primeira-dama do automobilismo nacional/ por BRUNO ASTUTO – 22/09/2015)

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