A primeira vez que vesti um smoking, outro convidado colocou a…

0
Powered by Rock Convert

Arquiteto e pedreiro

Italo Zappa (Paola, Calábria, 30 de março de 1926 – Baixo Leblon, Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1997), embaixador, o apóstolo da política externa independente.

Franzino, 1,60 metro, permanentes 60 quilos, o embaixador Italo Zappa era um diplomata diferente: jamais comparecia a recepções no Itamaraty. A um amigo curioso explicou: “A primeira vez que vesti um smoking, outro convidado colocou a mão no meu ombro e pediu: um uísque só com gelo, por favor. Eu tenho cara de garçom”. Com essa aparência declaradamente modesta, Zappa foi o mais brilhante, criativo e independente diplomata que a Casa de Rio Branco viu.

Monástico, mudava-se de um país para outro com apenas duas malas. Nelas arrumava dois ternos escuros, duas calças jeans, uma máquina de café expresso, outra de fazer espaguete e alguns livros. Foi arquiteto e pedreiro: imaginava em grandes linhas a política externa brasileira e não recuava quando convocado a arregaçar as mangas para materializar os projetos, nos quais acreditava apaixonadamente.

Assim foi quando o presidente Ernesto Geisel assinou o decreto removendo-o para Moçambique. Fez questão de ouvir do próprio Zappa seu desejo de servir na África. “É uma questão de coerência, presidente. Se o seu governo promoveu a abertura diplomática para a África, é preciso que embaixadores queiram lá servir.” Geisel balançou a cabeça e assinou a remoção. Zappa foi expedicionário nesse aspecto. Viajou secretamente ao coração do continente africano, onde se encontrou com os líderes da luta contra os colonialistas portugueses. A Agostinho Neto, de Angola, e Samora Machel, de Moçambique, garantiu o apoio brasileiro no primeiro momento. E assim aconteceu. Um fato inédito na História: a Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou sua indicação por unanimidade, sem nenhuma abstenção. Nos corredores, diplomatas suspiraram aliviados: sobraria um posto no roteiro Elizabeth Arden, como é chamado o circuito de embaixadas de Paris, Roma, Londres e Nova York. Aliviados ficaram também os exilados políticos brasileiros em Moçambique. A primeira missão de Zappa foi sair em busca dos desterrados, distribuindo passaportes, registrando filhos e oficializando casamentos. Aos agradecimentos, respondia: “É um direito constitucional”. Nunca ninguém ousou repreendê-lo.

Passados quatro anos, o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro chamou-o a Brasília. Perguntou para onde ele queria ir. “Manágua”, ouviu de volta. “Para lá eu não lhe mando. Aí mesmo é que vão dizer que você é comunista.” Belgrado foi sua segunda opção, por prever grandes confusões na Iugoslávia de então, com a morte de Tito. Também não levou. Despediu-se, então, entrou de licença e exilou-se no pequeno apartamento do Baixo Leblon, região boêmia do Rio de Janeiro.

Presentes doados Nenhum chanceler, no entanto, podia dar-se ao luxo de não ter Zappa na linha de frente. Guerreiro convocou-o novamente a Brasília e convidou-o para um desafio: assumir a embaixada em Pequim. O próprio Zappa havia costurado o reatamento das relações diplomáticas com a China, quando chefiava a então obscura Divisão de África, Ásia e Oceania. “Não era possível manter dois países como China e Brasil, com tantos interesses em comum, afastados.” Zappa costumava esboçar o mundo no papel e escurecer as zonas com as quais o Brasil mantinha relações: Europa e Américas. “Somos o Ministério das Não-Relações Exteriores”, ironizava. Na China fez o comércio bilateral saltar de míseros milhares de dólares para bilhões. Fez brotar parcerias em petróleo e no campo espacial. Trocou os três Mercedes da embaixada por um microônibus Nissan. “Cabe mais gente e ninguém fica aborrecido por não ter viajado no carro do embaixador”, explicava, pragmático. Esse Marco Polo da diplomacia brasileira nunca trouxe para casa pedras ou especiarias: presentes eram doados para o patrimônio da embaixada.

Reabrir a embaixada em Cuba foi a tarefa seguinte do desbravador diplomático, que não escondia suas simpatias. “Cada país constrói seu caminho”, frisava, segurando entre os dedos amarelecidos o companheiro inseparável, cigarros japoneses de baixíssimos teores. Com Fidel Castro, previsivelmente, foi admiração mútua à primeira vista. Eram freqüentes as visitas do líder cubano. Sempre de madrugada. As conversas rolavam até na cozinha, com Zappa preparando espaguete e Fidel ajudando. Ao deixar Cuba, foi agraciado com a maior condecoração já dada a um estrangeiro. E trouxe Fidel ao Brasil, em visita oficial.

Único patrimônio Ainda em Havana, Zappa já preparava o caminho para as relações diplomáticas com o Vietnã. Acabou convidado a assumir a embaixada em Hanói. Foi. Ele jamais deixara de enfrentar um desafio, quanto mais os que ele próprio criava. Nas conferências internacionais, diplomatas americanos arrepiavam-se quando viam aquele brasileiro do outro lado. Sabiam que teriam trabalho pela frente. Profundo conhecedor do idioma inglês, Zappa, nas comissões de redação dos documentos finais, não deixava passar nenhuma expressão dúbia que eventualmente pudesse fazer a balança pender para o lado americano.

Já doente, com um câncer no fígado, Zappa batalhava para continuar abrindo o Brasil para o mundo. Veio a São Paulo, operou-se e reassumiu o posto. Regressou quatro meses depois para um check-up, não conseguiu permissão médica para retornar. Recolheu-se ao Baixo Leblon, ao lado da mulher, Diana, para lutar pelo que lhe restava de vida, sempre com a cocker spaniel “Shima”, presente de Fidel. Os vietnamitas ofereceram-lhe tratamentos orientais. Fidel mandou emissários para convencê-lo a se tratar em Havana. Zappa morreu no dia 4, de complicações respiratórias, e deixa quatro filhos, Sérgio, Regina, Cristina e Ana, seu único patrimônio. Nascido em Paola, na Calábria, em março de 1926, Zappa foi criado em Barra do Piraí, no Vale do Paraíba, onde foi enterrado.

(Fonte: Veja, 12 de outubro de 1997 – ANO 30 – N° 45 – Edição n° 1.521 – Memória/ Por Silvio Ferraz – Pág; 123/124)

Powered by Rock Convert
Share.