A primeira mulher quilombola mestra em direito no Brasil

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Vercilene Dias, a 1ª mulher quilombola mestra em direito no Brasil

 

Para garantir direitos à sua comunidade, a advogada precisou sair de casa aos 11 anos sozinha

 

“Nasci no quilombo Kalunga, em Goiás, que abrange três municípios. Sou da região do vão do Moleque e vim de uma família de 12 irmãos, sou a segunda mais velha. Desde pequena, lembro de gente falando que a terra não era nossa, pedindo documento para comprovar nosso bem. Só que a memória era o nosso único comprovante, por isso queria estudar para ajudar todas as pessoas, e não só minha família.

 

Meu tio, que estudou até a quarta série, me alfabetizou. Quando completei 11 anos, ele disse ao meu pai que não tinha mais o que me ensinar. Por isso, decidimos que eu ia para Arraias, no Tocantins, fazer as tarefas domésticas em uma fazenda para continuar os estudos, já que no quilombo não tínhamos escola. Lembro da família me buscando nas margens do Rio Paranã.  Não sentia medo, estava muito apaixonada, com um propósito maior.

 

O susto veio quando cheguei na fazendo à noite e vi tudo iluminado. Não sabíamos o que era energia no quilombo. Com uma sacola de roupa na mão, dei início a uma nova rotina. Acordava cedo e dormia tarde, já que só podia jantar depois que a última pessoa da família comia. Cheguei a cair de cara no prato de comida de tanto cansaço. Fiquei lá de 2001 a 2004, quando mandei uma carta para o meu pai pedindo para voltar.

 

Não fiquei muito tempo em casa, porque precisava continuar os estudos. Uma tia que também era empregada doméstica, ganhava 90 reais por mês, me abrigou na cidade de Cavalcante. Depois, uma outra tia me recebeu em Goiânia, onde pude me preparar para o vestibular. Em 2011, entrei na Universidade Federal de Goiás no curso de Direito. Sou a primeira mulher quilombola a me formar neste curso.

 

Mas a trajetória no curso teve um início desesperador. Era tudo muito novo, alguns colegas passaram os cinco anos da graduação sem olhar na minha cara. Lembro que escutava falar de Constituição, mas nem sabia o que era. Na época, encontrei uma senhora, que era psicóloga, e precisava de uma pessoa para ajudar e fazer companhia. Ela me acalmou, me deu força e um teto para morar. Diferente da fazenda, agora recebia pelo meu trabalho.

 

Para o meu pai e as pessoas do quilombo, fiz “advocacia”. Sou conhecida lá assim. Depois da graduação, também fiz mestrado em direito agrário. Hoje, sou assessora jurídica na Terra de Direitos, organização de Direitos Humanos e Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), e faço parte da Associação Brasileira de Pesquisadoras (es) Negras (os) (ABPN).

 

É difícil lutar pelos direitos dos quilombolas em um cenário político tão agressivo como o nosso. Só eu escuto e presencio há 30 anos os mesmos problemas: ausência de escola de qualidade, água, energia, títulos para regulamentar as terras. O processo é muito lento e não resolvemos nem o mínimo. Não sei dizer como ter expectativa. São 3 a 4 horas no pau de arara para pedir socorro, isso em 2020, durante uma pandemia, porque não temos posto de saúde em todas as comunidades. A chegada de um vírus lá agrava o nosso genocídio, que já somos vítimas. Entramos com uma ação para o poder público racializar os dados sobre óbitos e infectados pelo coronavírus para tentarmos políticas públicas em prol dos nossos direitos.

 

A força para continuar a luta vem do exemplo das mulheres quilombolas e da inspiração para mudar o caminho das mais novas. Tive sorte que sofri abusos morais, mas tenho amigas que foram abusadas sexualmente nessa tentativa de sair do quilombo em busca de estudo e emprego. É muito complicado. Assim como Tereza Benguela, via como as mães, avós e tias, nos tratamos assim mesmo sem laços sanguíneos, moviam e movem a estrutura do quilombo. Os avanços que demos foram graças às articulações delas com toda a comunidade.

 

Minha avó e Dona Procópia, por exemplo, são senhoras que sempre atuaram na comunidade e ainda espalham felicidade, principalmente nos festejos em época de colheita, quando expressamos nossas cultura e rituais. Mesmo não morando no quilombo agora, essas mulheres ecoam dentro de mim diariamente e me dão força para continuar caminhando por uma realidade mais digna para o nosso povo”.

 

(Fonte: https://claudia.abril.com.br/sua-vida – SUA VIDA / Por Vercilene Francisco Dias* – Atualizado em 25 jul 2020)

*Vercilene Francisco Dias é advogada e mestra em direito agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Nascida no Quilombola Kalunga, de Cavalcante (GO), ela é a primeira mulher quilombola mestre em direito no Brasil, além de ser diplomada em estudo internacional em litígio estratégico em direito indígena e afrodescendente pela Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP).

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