A primeira mulher a ganhar uma corrida no Brasil

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Venina Piquet, a primeira mulher a ganhar uma corrida no Brasil

Ao volante de um Ford V8, ela teve uma carreira meteórica entre 1934 e 1935, até ser proibida de competir

 

Muito antes de Nelson nascer, outro Piquet já brilhava no automobilismo. Ou melhor: outra Piquet! Estamos falando de Venina Piquet, a primeira mulher a ganhar uma corrida no Brasil. Guiando seu Ford V8 sedã, ela venceu três das seis corridas que disputou oficialmente, dando poeira em grandes pilotos da época. Numa época em que ainda não havia autódromos no país, Venina mostrou grande talento em provas de rua e estrada.

 

Nascida em Mato Grosso, na primeira década do século XX, e carioca de coração, Venina tirou sua habilitação em 1926, numa época em que poucas mulheres assumiam o volante. Filha de militar e casada com o comerciante Francisco Dias Teixeira, atleta amador do Vasco da Gama, ela passou uns tempos prostrada, sem forças sequer para andar. Recorreu a médicos e curandeiras sem maiores resultados – até que descobriu a volúpia da velocidade.

 

PRIMEIRA PROVA, PRIMEIRA VITÓRIA

 

Tudo começou com a fundação da Associação Sportiva Automobilistica Brasileira (ASAB), em junho de 1934. Em 21 de outubro do mesmo ano, o grupo promoveu uma divertida gincana seguida por uma prova de arrancada à sério, no então longínquo Recreio dos Bandeirantes. Estimulada pelo marido, Venina inscreveu seu Ford Tudor (sedã de duas portas) 1933/1934, placa P-19-554, do Distrito Federal (que, a época, ficava no Rio de Janeiro).

 

Os Ford 1933-1934 eram bastante rápidos para a época – o petropolitano Irineu Corrêa, maior piloto brasileiro da época, corria com um Ford desses transformado em baquet (ou seja, aliviado da carroceria). E vale lembrar que o casal de bandidões Bonnie & Clyde usava um Ford 1933 para fugir em alta velocidade pelo interior dos Estados Unidos, quando foi cercado e morto pela polícia.

 

Mas voltemos ao Recreio dos Bandeirantes… Pelo regulamento da prova, era preciso acelerar em uma reta de 500 metros e, daí, havia 20 metros de frenagem até a parada total do carro. Quem fizesse no menor tempo, ganhava – e, com perícia invulgar, Venina conquistou o primeiro lugar, sendo 2,5 segundos mais rápida que o segundo colocado, Nicolino Guerrera, que pilotava um Autoplano (nome que se dava aos Hudson Terraplane no Brasil).

 

 

Venina Piquet

A vitória já na primeira prova disputada.

 

 

“Primeira victoria official de uma ‘chauffeuse’ brasileira”, trombetearam as manchetes dos jornais cariocas nos dias seguintes.

 

Ao ganhar a primeira prova automobilística de que participava, a automobilista foi muito festejada pelos adversários e pelo público – especialmente pelas senhoras e senhoritas que se dispuseram a ir até aquele sertão distante acompanhar a competição.

 

“O triunfo foi brilhantíssimo pois, a par das excelentes condições técnicas com que madame Venina Piquet Teixeira o conquistou, serviu também para inscrever o seu nome como o da primeira mulher vencedora de uma corrida de automóveis no Brasil”, resumiu o Diário Carioca.

 

SEGUNDA PROVA, SEGUNDA VITÓRIA

 

Pouco mais de um mês depois, em 8 de dezembro de 1934, o Automovel Club do Brasil patrocinou uma corrida na Ilha do Governador. Eram dez voltas, com um total de 60 quilômetros. Tendo seu marido como ajudante, Venina conquistou sua segunda vitória, terminando a prova em 46’12”.

 

“O seu novo triunfo é bastante significativo para a sra. Venina Piquet Teixeira, pois derrotou o franco favorito, Antonio Ribon, elemento que se achava bastante treinado no circuito – que a corredora carioca não chegou a percorrer antes da disputa”, relatou o Correio da Manhã.

 

CRITERIUM CARIOCA DE VELOCIDADE

 

automobilismo carioca estava em ebulição. Em 16 de dezembro de 1934, apenas uma semana depois da corrida na Ilha, foi promovido o Criterium Carioca de Velocidade, uma prova de quilômetro lançado em plena Vieira Souto, a avenida que beira a Praia de Ipanema. O percurso ia do Jardim de Allah (que na época era chamado apenas de “canal da Lagoa Rodrigo de Freitas”) até o Arpoador. Os competidores tinham 450 metros para ganhar velocidade e, daí, 1.000 metros a serem percorridos na maior velocidade possível.

 

Muito aguardada pelo público, Venina já começava a se tornar celebridade. Segundo os jornais, ela já era “a maior expoente atual do automobilismo no Brasil, pois que, nas únicas provas em que participou saiu sempre vencedora”.

 

Membro da Associação Brasileira pelo Progresso Feminino, a piloto tentava estimular a presença de outras mulheres nas competições.

 

“Ela espera não ser a única mulher a disputar a corrida, pois acredita que há no Rio muitas chauffeuses capazes de alinharem-se com ela”, convocou O Jornal.

 

O regulamento era severo com carros fechados, que não podiam ser aliviados em nada. Além disso, a competição era com calejados automobilistas da época, como Julio de Moraes, Rubem Abrunhosa e Primo Fiorese – além de José Santiago, que preparava o motor do Ford de Venina. Mesmo assim, ela conseguiu ficar em quinto lugar entre os 14 inscritos na categoria “Turismo de 3 a 4 litros”, à frente até dos potentes Bugatti e Autoplano.

 

NA RIO-PETRÓPOLIS, A GLÓRIA MAIOR

 

Chegou a vez de disputar o Kilometro Lançado Brasileiro, em 31 de março de 1935, na estrada Rio-Petrópolis. Era uma prova de velocidade com ampla cobertura na imprensa. Pelo regulamento, o Ford V8 enquadrava-se numa categoria um tanto ampla, “para carros de 1.600 a 3.650 cm³” (o regulamento era sob medida para as inscrições dos Ford, com seu V8 Flathead de 3.622 cm³), e disputaria o prêmio República do Uruguay.

 

Desta vez, em vez de levar o marido, Venina foi acompanhada da filha do piloto e preparador José Santiago. Para os padrões de hoje, o Ford Tudor era até uma carro leve – pesava em torno de 1.150 quilos. Fato é que Venina não tirou sequer a buzina dupla ou os para-choques para entrar na competição. E, certamente, Santiago conseguia extrair do V8 bem mais que os 85 cv originais.

 

De pé na tábua, Venina percorreu o retão de um quilômetro, teve que se desviar de um pedestre, mas, mesmo assim sentiu que tinha feito um ótimo tempo. Só que, por uma falha da cronometragem oficial, não teve seu tempo medido oficialmente…

 

Vários cronômetros particulares mostraram que a piloto sairia vencedora desta categoria. Diante do impasse e em apoio a Venina, os outros corredores invadiram a pista em sinal de protesto. A solução foi refazer a prova dali a algumas semanas – e assim aconteceu.

 

No dia 14 de abril de 1935, o trânsito da Rio-Petrópolis foi fechado novamente. E, mais uma vez, Venina foi a mais rápida, percorrendo o quilômetro em 26″04 (à média de 138,2 km/h). Em segundo lugar ficou Willy Borghoff, com seu Adler Trumpf de corridas (28″74). Rubem Abrunhosa, grande volante da época, ficou em 4º, com uma Bugatti (29″83).

 

Para se ter uma ideia de quão rápida foi Venina, o jornalista Roberto Marinho havia feito 26″17 na prova de 31 de março, ao volante de seu Voisin C22. Era um supercarro francês da época, que, em 1933, já havia batido um recorde de velocidade no mesmo retão da Rio-Petrópolis: assombrosos 144km/h.

 

A arrojada Venina não tinha medo?

 

– Morre-se no ônibus, no carro de passeio etc. Nas corridas, o cuidado é levado ao máximo. Não se pisa o acelerador sem um raciocínio premeditado – explicou em uma entrevista.

 

 

Venina Piquet

Venina (à dir.), o preparador José Santiago e a filha dele posam com o Ford logo após a vitória no Kilometro Lançado, na Rio-Petrópolis.

 

E sempre que lhe abriam espaço nas páginas dos jornais, ela tentava convencer outras mulheres a correr:

 

– A questão não está na falta de ânimo esportivo, nem na ausência de coragem, pois a mulher brasileira não teme os riscos do automobilismo… Precisa se liberar de certos preconceitos. O esporte não admite a prisão a velhas praxes e convenções – disse a empoderada dos anos 30.

 

MARIDO PROIBIU DE DISPUTAR O CIRCUITO DA GÁVEA

 

Em 5 de maio de 1935, a piloto participou da Prova Rampa do Ascurra, no bairro do Cosme Velho, serpenteando pelo morro aos pés do Cristo Redentor. Fazer curvas tão fechadas com seu Ford sedã era um tanto desigual frente às baratinhas dos concorrentes. Apesar de um imprevisto no meio da subida, Venina concluiu o itinerário – mas fora do tempo de classificação.

 

Correu então o boato de que Venina solicitara sua inscrição ao Automovel Club do Brasil para participar do III GP do Rio de Janeiro, o Circuito da Gávea de 1935, que seria disputado no dia 2 de junho daquele ano.

 

Com seu Ford já transformado em baquet, ela chegou a treinar para a prova mais importante do automobilismo brasileiro da época, mas foi proibida de correr pelo marido. O argumento eram “ordens médicas”.

 

RALI DE REGULARIDADE

 

A prova mais longa disputada por Venina foi um rali de regularidade – o primeiro do gênero no Rio, em 15 de setembro de 1935. Foi um percurso surpresa de 138 quilômetros, sob forte temporal, que deu uma volta completa pela cidade: saiu da Feira de Amostras (no Centro do Rio, onde hoje fica a Esplanada do Castelo), tomou o rumo da Tijuca, acompanhou a linha do trem até Campo Grande, voltou por Ilha de Guaratiba, Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Copacabana, até a chegada, no mesmo ponto da largada.

 

Mais duas senhoras participaram da prova: Irene Moscozo e Celia Seabra. E Venina, novamente, mostrou seu valor com um honroso 5º lugar, entre 50 participantes. Sua carreira de piloto, contudo, estava chegando ao fim…

 

MAIS ORDENS MÉDICAS

 

Em 2 fevereiro de 1936 seria disputado o Kilometro de Arrancada, na Avenida Epitácio Pessoa (que margeia a Lagoa Rodrigo de Freitas).

 

O nome da corredora chegou a constar entre os inscritos para a prova promovida pelo Automovel Club do Brasil, mas logo veio um pedido de retificação.

 

“Venina Piquet, a conselho médico, se encontra em uma estação de repouso, estando a mesma proibida de segurar no volante”, publicou o Diário Carioca.

 

Seu médico, Dr. Arnaldo Barata, a proibira de dirigir automóveis.

 

– Se um simples passeio lhe era prejudicial, uma corrida, por menor que fosse, não lhe traria benefícios – afirmou o marido de Venina ao Diário Carioca, sem entrar em maiores detalhes sobre o suposto problema de saúde da corredora.

 

Mas a imprensa continuava a derramar-se em elogios: “Possuidora de muito sangue e não menos habilidosa no volante de seu V8, madame Venina tornou-se credora da admiração e estima de nossos esportistas”, alardeou o mesmo jornal.

 

A ÚLTIMA TENTATIVA

 

Em junho de 1936, veio uma nova esperança de que Venina corresse no Circuito da Gávea. A inscrição da francesa Hélle Nice – que viria a ser a primeira mulher a participar da prova – deve ter mexido com os brios da brasileira.

 

Venina compareceu à comissão esportiva do ACB acompanhada do piloto Henrique Ré. A princípio, ambos correriam no mesmo Marmon, revezando-se na direção ao longo das 25 voltas do percurso.

 

Veio então um convite para formar dupla com o piloto João Enrico, que tinha uma Bugatti de corridas e era grande admirador de Venina.

 

No ano anterior, essa Bugatti abandonara o GP do Rio de Janeiro por uma pane mecânica. Para consertar a “barata”, foi escalado José Santiago, preparador do Ford de Venina até a vitória no Kilometro Lançado, na Rio-Petrópolis. Vieram, contudo, seguidos atrasos.

 

“Amanhã a Bugatti estará pronta…” – e a promessa nunca se cumpria, até que não foi mais possível participar dos treinos eliminatórios e nem participar da Gávea de 1936.

 

– Atribuo o gesto de José Santiago ao receio que, não só ele, mas também outros volantes, têm da minha concorrência. Paguei adiantadamente pelo serviço e, muito embora avisasse que havia urgência no trabalho, não me foi dado o carro a tempo de disputar as eliminatórias – acusou Venina

 

O ruidoso bate-boca entre Venina e José Santiago foi parar nos jornais e terminou em ameaça de processo por difamação:

 

– Não tenho qualquer compromisso com essa corredora. Para provar a minha inocência, lançarei mão dos recursos extremos – ameaçou Santiago, muito melindrado.

 

Fato é que foi a francesa Hélle Nice – e não a brasileira Venina Piquet – quem se tornou a primeira mulher a correr no Circuito da Gávea.

 

Daí em diante não encontramos mais registros da participação de madame Piquet em corridas. Provavelmente ficou desgostosa demais para continuar no automobilismo esportivo e encerrou sua curta (e brilhante) carreira com três vitórias em seis provas disputadas.

 

NA SEGUNDA GUERRA

 

Somente em fevereiro de 1942 Venina voltou às páginas dos jornais. O Brasil estava para declarar guerra ao Eixo e Venina enviou uma carta ao presidente Getulio Vargas oferecendo-se para instruir as mulheres brasileiras a dirigir ônibus, tratores e ambulâncias, para que pudessem participar mais ativamente do esforço de guerra.

 

“Olhemos para as mulheres inglesas e americanas (…) Para elas, o trabalho não é sacrifício (…) Em vários trabalhos que eram privilégio dos homens, iremos encontrar a mulher inglesa e americana. No campo, manobrando tratores e arados. Nas cidades, dirigindo ônibus, ambulâncias, bondes, elevadores e automóveis de praça, bem como nas fábricas de munições, de aviões e de tanques. (…) A reserva de braços da mulher na guerra é um símbolo de riqueza.”

 

Na carta a Getulio, Venina lembrava de seus antepassados militares: “(…) filha de Justiniano Ferreira Piquet, capitão de corveta, sobrinha do almirante Luiz Maria Piquet (Barão de Santa Maria – um dos heróis da passagem do Humaitá).”

 

“Sendo motorista há 16 anos, sinto o desejo de, com autorização de V. Exa., encarregar-me de instruir a mulher brasileira para que, no caso de emergência, possa substituir o homem nos diversos meios de transportes (…). Aguardo as ordens de V. Exa.”

 

Pelo visto, tais ordens nunca chegaram.

 

O sobrenome Piquet só voltaria a ser associado ao automobilismo décadas depois, graças a Nelson Piquet, tricampeão mundial de Fórmula 1 nos anos de 1981, 1983 e 1987. Consultados, Nelson e seu irmão Geraldo dizem desconhecer qualquer parentesco com a pioneira Venina Piquet.

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