“Não morrerei feliz se não vir o meu Brasil trilhando o caminho amplo do direito e da democracia”.

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“Quando eu morrer, corneteiro,
Alma piedosa e nova,
Tocai por favor, silêncio
Juntinho da minha cova.”

Major Cosme (2 de abril de 1875 – Salvador, 15 de março de 1972), deputado estadual baiano. Advogado dos humildes e deputado estadual, mostrou como a gratidão de toda uma cidade pode anular com ternura perfeita uma última vontade formulada em maus versos. A barulhenta multidão que acompanhou na tarde de quarta-feira, dia 15 de março, à sua cova rasa, na Quinta dos Lázaros, em Salvador, o major Cosme de Farias, 96 anos diante do corpo frágil coberto de flores, alguns de curvavam para beijar-lhe as mãos, outros olhavam simplesmente, chorando, enquanto fora, sob o sol forte, a cada arremetida da polícia para conter a massa, alguém gritava como um protesto: “Viva Cosme!”

Rábula por mais de setenta anos, sempre defendendo “principalmente pobres e pretos” (só há duas fotografias no Tribunal de Júri de Salvador, a sua e o de Jesus Cristo), Cosme era agora, pela primeira vez, uma presença silenciosa em meio à multidão, discretamente vestido de cinza, em seu caixão bizarramente forrado de cor-de-rosa.

Quando, porém, depois da missa de corpo presente (várias vezes interrompida por causa do barulho) os políticos quiseram se apossar das alças do seu caixão, a massa se agitou. Enquanto o governador Antônio Carlos Magalhães era empurrado para longe, e até o bispo dom Avelar se via espremido contra as grades da igreja, uma voz bradou no melhor estilo condoreiro dos discursos do próprio major: “Entreguem Cosme ao povo. Ele pertence a nós, porque nós pertencemos a ele”.

Em 1969, trocando-lhe o nome para major Damião de Sousa, o romancista Jorge Amado registrou em “Tenda dos Milagres” as suas aventuras: as verdadeiras e as que o anedotário baiano lhe atribuía (não se sabia ao certo quantas famílias tinha, e seria capaz de beber “boa parte do álcool da Bahia”, diziam). Mas nem os seus 96 anos de vida nem a imaginação de Jorge Amado foram capazes de antecipar o que aconteceria no dia do seu enterro. Levado aos trancos pela ladeira do Pelourinho em seu caixão de primeira (queria de terceira, mas previu-se que sem boa madeira não chegaria inteiro ao cemitério), o cortejo do major ia fechando o comércio por onde passava. Na Baixa do Sapateiro, as Lojas Brasileiras tiveram as vitrinas partidas a pedradas por não descerem as portas. Com o trânsito da cidade paralisado, os companheiros de Cosme na União dos Trovadores da Bahia cantavam versos de improviso, entre salvas e vivas da multidão. Coberto com a bandeira da Bahia, o caixão ia sendo assaltado pelos que desejavam tocá-lo, e entre os que esticavam as mãos havia uma velhinha que gritava, histericamente: “Ele é um santo! Ele é um santo!”

A vida real e as anedotas em torno de Cosme de Farias concordam em que “o homem mais caridoso da Bahia” não foi exatamente um santo. Mas, se houve um pecado que não teve, foi o da falta de idealismo. Durante sua longa vida (completaria 97 anos no dia 2 de abril, morreu de velhice), editou quase 2 milhões de “Cartilhas de ABC” para combater o analfabetismo, concluindo sempre com um conselho em versos: “Vosmecê que sente n’alma/ A borbulha do civismo/ Ajude também a luta/ Contra o analfabetismo!” Patriota que só comparecia às festas cívicas usando gravata verde e amarela, o idealista major Cosme de Farias desejava viver ao menos até aos cem anos, na esperança de ver realizados alguns dos seus maiores sonhos. Um deles era o fim do analfabetismo. Outro, ele expressou da tribuna da Assembleia da Bahia, em maio de 1971: “Não morrerei feliz se não vir o meu Brasil trilhando o caminho amplo do direito e da democracia”.

(Fonte: Veja, 22 de março de 1972 – Edição n° 185 – Datas – Pág; 78)

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